Protestos e provocações

22/06/2013 03:44
4º ato contra o aumento da tarifa do transporte público em São Paulo, na quinta-feira passada. Foto: Daniel Teixeira/Estadão

4º ato contra o aumento da tarifa do transporte público em São Paulo, na quinta-feira passada. Foto: Daniel Teixeira/Estadão

 

Esta última semana, no Brasil, foi marcada por um ar de atipicidade. Manifestações contra aumentos das tarifas no transporte público em diversas cidades, sobretudo em São Paulo e no Rio de Janeiro, deram vazão a insatisfações muito mais fortes. A maior delas, alimentada pela violência repressiva do Estado, descobriu-se no ato: nem mesmo o direito a se manifestar estava garantido. Afinal, quando e como podemos manifestar que estamos descontentes com a qualidade do transporte público, com os gastos bilionários e remoções forçadas em eventos como a Copa ou com a criminalização de movimentos sociais? Nas caixas de comentários dos jornais, nas urnas a cada dois anos? A resposta que diversas capitais brasileiras — impulsionadas por outras cidades, e por brasileiros em outros países — deram foi não. Especialmente São Paulo após a manifestação de quinta-feira, 13, em que toda a estratégia violenta da polícia militar produziu muitas imagens e relatos de agressões, descontrole, cerco e ilegalidades (como ausência de identificação nos uniformes, detenção por porte de vinagre e revistas abusivas).

Hoje ocorre na capital paulista (e em outras capitais brasileiras) mais uma manifestação, desta vez o 5º ato convocado pelo Movimento Passe Livre (MPL), cuja origem remonta ao começo dos anos 2000, como se pode ler aqui. A expectativa inicial é de que 20 mil pessoas compareçam no ato, embora mais de 240 mil tenham confirmado presença na página do evento no Facebook. Um grande ato também deve ocorrer no Rio de Janeiro, e dezenas de outros em várias cidades brasileiras.

Considero precipitado fazer análises que sejam consistentes neste momento, uma vez que o fôlego maior adquirido pelas manifestações ocorreu na quinta-feira à noite. Após os vários atos marcados para hoje, será possível compreender um pouco da extensão tanto das manifestações quanto das  novas reivindicações que podem surgir. Há, entretanto, dois aspectos para os quais gostaria de chamar atenção de forma breve. Um deles diz respeito à cobertura da imprensa, e outro à agenda proposta pelo MPL.

Há duas semanas, ouvindo um trecho do Jornal Nacional, o âncora William Bonner mencionou, à respeito da presença de lideranças indígenas em Brasília, que elas “queriam ser ouvidas pela Presidente” em relação à construção da usina de Belo Monte. No dia seguinte, a mesma frase. O incômodo com esta construção discursiva era gritante para mim, pois qualquer foco no interesse público que a atividade jornalística deve respeitar estava sendo sistematicamente ignorado por aquele telejornal. Não tenho dúvidas de que Bonner e seus colegas de bancada sabem que é direito dos povos indígenas serem consultados, de forma ampla e acessível, a respeito de projetos que impactem em seus modos de vida e em suas terras, conforme a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil em 2002. Este caso da cobertura da imprensa sobre os povos indígenas é apenas um. Uma série de pesquisas da área de comunicação, sobretudo, têm evidenciado aquilo que muitos ativistas de movimentos sociais sentem com frequência: os maiores veículos de comunicação (“a grande mídia” ou “a imprensa hegemônica“) impressos e televisivos do Brasil são extremamente negativos quando cobrem movimentos sociais e manifestações de rua — isso é claro quanto a movimentos pela reforma agrária e, com nuances variadas, em relação aos movimentos feminista e LGBT.

Charge do italiano  Marco Marilungo. Foto: marilungo.com

Charge do italiano
Marco Marilungo. Foto: marilungo.com

Não foi diferente com as primeiras manifestações contra o aumento da tarifa do transporte público em São Paulo, ainda na semana retrasada. Capas e comentários sobre o “vandalismo“, o “dano ao patrimônio público“, os “transtornos ao trânsito” abundaram nos telejornais e manchetes dos impressos. Fotos impactantes ainda mais. E editoriais pedindo mais repressão por parte da polícia foram feitos pelos dois mais importantes jornais de São Paulo (e também do país), o Estadão e a Folha de S. Paulo. Na quinta-feira e após ela, o tom mudou sensivelmente em algumas coberturas — e o casos engraçados são muitos para discutir aqui, mas dois bem simbólicos são os de José Datena e Arnaldo Jabor. O fato é que tais veículos viram-se diante da possibilidade de perda acentuada de credibilidade ao insistirem na criminalização das manifestações. A truculência da polícia de São Paulo foi a cereja (imagética) do bolo.

O segundo ponto que quero destacar é a própria natureza inicial da manifestação. Ela surge diante da revolta com o aumento de 20 centavos na tarifa de ônibus, mas não se resume a ela. O cancelamento deste novo valor é certamente uma reivindicação, mas a proposta do MPL é muito mais ampla (e aqui ainda falo exclusivamente da questão do transporte público). Por que não um transporte público sem tarifa? Dada a estranheza que esta ideia causa em muitos (“quem vai pagar?“), é preciso lembrar de algo mais familiar: existe tarifa para frequentar a rede pública de ensino? Não. Ou para acionar o Corpo de Bombeiros num caso de emergência? Igualmente não. A proposta, então, está neste mesmo âmbito, e diz respeito ao custeamento do transporte público, via impostos, da mesma maneira como outros serviços públicos não tarifados de forma específica (como a saúde e a educação). Para compreender bem esta proposta, sugiro ler alguns materiais (um, dois, três, quatro), dentre muitos outros.

Para finalizar, indico uma análise feita pelo sociólogo espanhol Manuel Castells, em São Paulo, justamente no mesmo momento em que ocorria o 3º ato puxado pelo MPL, no dia 11 de junho. Castells é um pesquisador dos movimentos sociais na era da informação já faz muito tempo, e por isso suas considerações são sempre pertinentes para uma discussão sobre o tema. Naquela noite, diante do que ocorria em São Paulo, um membro da audiência lhe pediu uma explicação. Um trecho da resposta de Castells:

Todos estes movimentos, como todos os movimentos sociais na história, são principalmente emocionais, não são pontualmente indicativos. Em São Paulo, não é sobre o transporte. Em algum momento, há um fato que traz à tona uma indignação maior. Por isso, meu livro se chama REDES de indignação e de esperança. O fato provoca a indignação e, então, ao sentirem a possibilidade de estarem juntos, ao sentirem que muitos que pensam o mesmo fora do quadro institucional, surge a esperança de fazer algo diferente. O quê? Não se sabe, mas seguramente não é o que está aí. Porque, fundamentalmente, os cidadãos do mundo não se sentem representados pelas instituições democráticas. Não é a velha história da democracia real, não. Eles são contra esta precisa prática democrática em que a classe política se apropria da representação, não presta contas em nenhum momento e justifica qualquer coisa em função dos interesses que servem ao Estado e à classe política, ou seja, os interesses econômicos, tecnológicos e culturais. Eles não respeitam os cidadãos. É esta a manifestação. É isso que os cidadãos sentem e pensam: que eles não são respeitados.

Num sentido similar à resposta fornecida pelo pesquisador espanhol, a jornalista Eliane Brum escreveu hoje cedo a coluna Quanto valem vinte centavos? Ou seja, a questão é (também) o aumento, mas não se resume a ele. E a força dessas mobilizações, ainda pouco analisável pela maioria de nós, indica que há um momentum em curso. Um fecho politicamente provocativo, tanto à razão quanto ao afeto, está nesta declamação do poema Provocações, de Luis Fernando Veríssimo, feita pelo ator Antonio Abujamra. O poema é de 1999, mas a provocação é de hoje mesmo: afinal, que é exatamente violência ou vandalismo?