Por que não se pode discutir a crença religiosa?
Autor: Jeronimo Freitas Filho (*)
Editor: Pedro Almeida
Existe um livro de Robert Dilts, cujo título é Crenças. Nele, Dilts explica detalhadamente como formamos nossas crenças, baseadas em experiências passadas. Dilts, num de seus seminários, dá como exemplo um caso ocorrido nos EUA, onde algumas pessoas sentadas numa calçada, à mesa de um café, assistem a um acidente de trânsito. Um carro atropelou alguém e partiu em fuga. Elas são chamadas a testemunhar e cada uma dá uma versão diferente quanto ao modelo de carro, sobre a cor do carro, se ele subiu ou não a calçada, etc.
Todas viram o mesmo acidente, do mesmo ponto de referência, mas cada uma formou uma imagem diferente da cena. Entretanto, a cena foi uma só, portanto não seria possível que todas as quatro versões diferentes estivessem corretas. Apenas uma, ou no pior dos casos, nenhuma delas poderia estar correta. O que acontece pode ser respondido pela PNL Programação Neurolinguística e pela NCC Neurociência Cognitiva ciências as quais estudei e ainda estudo muito.
O que acontece é que o nosso cérebro trabalha através da associação e de estímulos. No caso da visualização de um acidente, ele trabalha basicamente com associação de imagens. Para compreender algo novo, o nosso cérebro busca o menor esforço (lei do custo e benefício) e associa essa nova informação a imagens já arquivadas em nosso banco de dados. Como cada pessoa tem uma experiência de vida diferente, forjada por culturas, ambientes e épocas diferentes, cada pessoa armazena imagens diferentes e, por conseguinte, forma representações diferentes da realidade.
Existe um processo conhecido como: O Mapa não é o território (Map and Territory relationship), postulado por Alfred Korzybski, se não me engano, que explica que um mapa de algum lugar é uma representação da realidade, mas não é a realidade em si. O mapa do Brasil não é o Brasil, mas pode muito bem ser usado para dar uma idéia do território brasileiro. Usando-se disto, cada um interpreta as coisas baseado em suas próprias crenças, em seu próprio mapa. A construção desse mapa é bastante influenciada pelos metaprogramas que cada pessoa tem. Não vou me aprofundar na explicação do que é um metaprograma, mas grosso modo, posso dizer que as pessoas podem ser classificadas em três grupos de acordo com a utilização de seus metasprogramas para formar a realidade: os sinestésicos, os visuais e os auditivos.
As pessoas usam recursos para interpretar a realidade e esses recursos podem ser de base sinestésica (mais pro sentimento, pro tato), podem ser visuais ou podem ser auditivos. Não quer dizer que um grupo está mais certo que o outro, mas que os nossos cérebros utilizam interpretações diferentes para representar a realidade.
Se você tentar explicar como é o mar a um Kalahari (povo nativo vivendo em pleno coração da África), eles, que nunca viram o mar, vão tentar associar as informações que receberam de você às imagens de coisas às quais eles estão familiarizados e que estão arquivadas em seus subconscientes: uma lagoa ou um rio, por exemplo. Quando eles finalmente tiverem a oportunidade de ver o mar, eles vão ver que a imagem que faziam anteriormente do mar, não correspondia exatamente à realidade. Após verem o mar eles vão, inclusive, compreender melhor as explicações que você os tinha dado anteriormente. Se antes era difícil de assimilá-las, agora, vendo o mar, a coisa ficou mais fácil. Toda aquela informação vai agora fazer parecer mais clara. Se ao chegarem de volta à tribo eles tentarem explicar como é o mar a quem ficou e pedirem que cada um faça um desenho, nenhum desenho será igual a outro, pois novamente, cada um vai associar imagens mais pertinentes à sua compreensão para tentar formar a imagem de algo que, até então, lhes é abstrato.
Pode ser que você, crente, e eu, ateu, sigamos caminhos paralelos com relação a crenças religiosas. Seguimos caminhos paralelos, decerto, mas eles podem convergir. Não estou dizendo que eu tenho razão e você não. Digo apenas que busco analisar o mundo ao meu redor através da óptica da razão, enquanto que o crente usa a razão para umas coisas e a emoção, o sentimento, o espiritualismo, para as questões religiosas. Eu aprendi, com a minha experiência de vida, cursando várias faculdades, vivendo e visitando diversos países, convivendo com gente de várias culturas e trabalhando em setores tão distintos, como o acadêmico (biologia), o financeiro, o tecnológico e o marketing, que a emoção não é uma boa conselheira, enquanto que a razão, a análise e a discussão fazem nos aproximarmos muito da verdade.
Eu não aceito que, pelo fato de seguirmos caminhos paralelos, uma discussão entre nós se torne impossível. Seria subestimar a nossa capacidade de entendimento. Se as pessoas raciocinassem dessa forma, ainda viveríamos numa sociedade onde a força bruta seria a solução para todas as divergências. Entretanto, não espero te converter num cético, num simples toque de mágica. Mas é verdade que tenho esperanças de, pelo menos, te dar o insight para uma visão racional da realidade. Assim como eu cometo erros, estou certo que você, assim como todas as outras pessoas, também comete erros todos os dias. Todo mundo é passível de erro, não é verdade? Eu me surpreendo errando todos os dias, você não? Eu diria que errar é mais que humano. Errar é vertebrado.
Já que eu estou consciente que sou passível de erros, eu me preocupo em saber se aquilo em que acredito é certo ou errado. Você, não tem essa preocupação? Na minha vida eu já me enganei quanto a sentimentos do meu coração. Fossem eles em relação a pessoas ou a opiniões. Alguns desses sentimentos eram coisas simples, outros, questões mais profundas. Acredito que com você já deva ter acontecido algo parecido. Uma decepção com alguém, um amigo, um colega, o governo. Não importa! Acontece que às vezes parecemos estamos certos de uma coisa a qual defendemos com o maior afinco e depois vemos que aquilo que defendíamos era falso. São com esses tipos de erros e com os erros dos outros que adquirimos experiência.
Eu já defendi o comunismo, hoje não defendo mais. O tempo mudou, as relações humanas e a geopolítica evoluíram e, para mim, o comunismo não oferece mais uma solução aceitável aos problemas econômicos e sociais atuais. Aliás, ele vai de encontro à necessidade intrínseca e eu diria até genética da competição. Eu já fui contra o aborto e defendi isso com unhas e dentes, por conta das minhas crenças religiosas. Hoje sou a favor, na maioria dos casos. Eu já acreditei na vida após a morte, na reencarnação e hoje não creio mais. Esses são apenas alguns exemplos.
Um mujahideen crê, do fundo de sua alma, que ao se explodir como mártir, num mercado público, despedaçando dezenas de inocentes que para ele são infiéis, ele irá ao paraíso e ainda por cima receberá 72 virgens, e é Alá quem vai lhe proporcionar isso tudo. Ele sente isso, ele realmente acredita com toda a força do seu ser. Ele nunca teve provas disso, mas essa é a sua certeza absoluta.
Eu acho que, nem que fosse pra reforçar as próprias crenças, as pessoas deveriam analisá-las, sob a óptica da razão. Já que somos todos passíveis de erro, é bem provável que muitas das coisas em que acreditamos não estejam lá tão certas. Você não acha? Não seria possível que aquilo que você ou que eu acredito esteja equivocado? Não seria melhor se nós pudéssemos eliminar a maior parte das nossas crenças falsas, guardando apenas as que são fundamentadas e assim podermos concentrar a nossa atenção apenas nessas crenças? Pense nisto! Parar de perder tempo com o que não existe e passar a se concentrar no que funciona. Há como fazer isto. A metodologia científica oferece, por meio de debates, experimentos, discussões, meios de se analisar a pertinência de muitas crenças.
Eu, que estudo neurociência cognitiva, sei que ela esclarece um bocado de coisas sobre a concepção do pensamento e formação das crenças. Coisas incríveis. Talvez esse seja um dos motivos pelos quais eu insista nesse assunto. Eu sei como as crenças podem se aprofundar tanto em nós. Eu estudei muito, tanto as crenças limitadoras, como as que levam pessoas fracassadas a darem desculpas pelo fracasso e a acharem razões para justificar o fato de outras pessoas terem tido sucesso no mesmo campo na qual elas fracassaram, quanto às crenças enriquecedoras, às quais utilizo diariamente, para crer que posso atingir todas as minhas metas.
Na verdade, o nosso cérebro não percebe se uma informação recebida é verdadeira ou falsa. Você pode enganá-lo para tirar benefício disto. Existem técnicas que tiram proveito disto. Se você é tímido, por exemplo, e começar a se visualizar como uma pessoa extrovertida e radiante e aprender as técnicas adequadas para convencer o seu cérebro sobre isso, seu cérebro vai receber essa informação como verdadeira e você vai passar a se sentir confiante. Sendo assim, nós podemos muito bem acreditar em algo, com a mais pura convicção, sem saber que aquilo é falso. Quer a prova pra isto? Veja a variedade de crenças religiosas. Para o cristão, quem matar não vai pro céu. Pro espírita, quem se suicida vai para o umbral e para o muçulmano mujahideen, o cara que se suicida matando outros, durante a jihad[1] vai para o paraíso. Para alguns judeus trabalhar no sábado e pronunciar o santo nome do senhor é pecado grave (por isso existe a expressão my gosh, ao invés de my God), já os evangélicos pentecostais gritam o nome de Deus mil vezes durante o culto e não guardam o sábado. Muçulmanos não comem porco, hindus não comem vacas. Muçulmanos fazem jejum (Ramadan) como ritual sagrado, enquanto católicos fazem do canibalismo[2] seu sacramento. Católicos acham que Jesus foi o messias, já os muçulmanos acham que foi Maomé e os judeus acham que o messias ainda está por vir. Todas essas crenças acima citadas não podem estar certas, posto que são antagônicas entre si. Parece lógico, não é? No entanto, cada crente acha que sua crença detém a verdade e você não consegue dissuadi-los disto, principalmente pelo fato deles não aceitarem discutir o assunto.
Baseado em quê, você acredita na existência de Deus? Baseado num sentimento profundo, que você não é capaz de explicar? Você já parou pra pensar que desejar profundamente que exista um Deus criador não faz com que esse Deus exista de fato?
Eu sei que algumas pessoas precisam acreditar em algo. Precisam de um sentido para a vida. E uns mais desesperadamente que outros. Em Pernambuco, houve um caso de polícia famoso. O assassinato de duas adolescentes, que ficou conhecido como o Processo dos Kombeiros. Eu li no jornal o desfecho do processo da morte da Tarcila Gusmão e da amiga. Li que o pai da Tarcila disse algo como:
“Tarcila, ainda não foi dessa vez que painho pôde cumprir a promessa. Eu não sei quanto tempo eu vou viver, mais nós ainda vamos nos encontrar”…
Eu seria incapaz de quebrar o encanto deste homem, mas infelizmente não há nada que dê suporte ou evidencie o desejo de que um dia ele vá reencontrar a filha. Assim como eu não vou mais ver o meu velho pai.
Por outro lado, quando não envolver tanta dor, eu não vou deixar de levantar a discussão apenas para não correr o risco de destruir a ilusão de alguém. Acho que, quando podemos, temos o dever de tirar as pessoas da ignorância. Preste atenção: eu não estou dizendo que eu posso provar que Deus não existe. O que eu digo é que devemos discutir em busca da resposta e assim tentar se aproximar da verdade, pelo fato de irmos eliminando as falsidades no caminho. Pra mim tudo pode ser discutido e a fé, ou a crença, podem ser analisadas e testadas. Se a sua crença é verdadeira, qual é o problema?
A verdade nunca perde em ser verificada Shakespeare
————————————————————————————————
(*) Jeronimo Lemos de Freitas Filho é recifense e vive em Bruxelas desde 1998. Formado em Biologia pela UFPE com doutorado em Ecologia Humana pela VUB (Bruxelas). Tem como hobby estudar Memologia, Neurociência Cognitiva a Programação Neurolinguística. Estuda os impactos socioculturais da crença em divindades e dos males da religião e do uso da fé em detrimento da razão.
Notas:
[1] Guerra santa.
[2] O dogma católico dita que, durante a eucaristia, herança dos rituais pagãos babilônicos e imputados na educação de Jesus, no momento em que o padre pronuncia Comei do meu corpo e bebei do me sangue…, ocorre o fenômeno da transubstanciação: o pão e o vinho transformam-se, respectiva e verdadeiramente, na carne e no sangue de Cristo.