Genes criminais e cérebros criminosos
Já estamos lá?
Publicado em 7 de maio de 2013 por Patricia Smith Churchland, B. Phil no Neurophilosophy
Prevenir o crime, ao invés de esperar pelo crime ser cometido, é atraente. Identifica-se o indivíduo que irá cometer o crime, e aí se intervem. O que poderia ser mais sensato? Primeiro, entretanto, como se identifica o malvado incipiente? Calombos no crânio foram já considerado pelos frenologistas
como fornecendo uma pista importante. A hipótese caiu sobre sua própria lâmina por que seu poder preditivo não pode ir além do zero. Estas ambições preditivas permanecem completamente vivas, contudo, o mais importante, os métodos de identificação foram aperfeiçoados. Conselho: Não perca seu tempo observando o crânio. Olhe dentro dele. O próprio cérebro. E também para os genes que fazem o cérebro.
No The Wall Street Journal (edição de Sábado/Domingo, 27-28 de de abril de 2013), os psiquiatra/neurocientista Adrian Raine postulou uma assinatura cerebral da mente criminosa. A sugestão é que existiria uma ligação entre os baixos níveis de atividade nas regiões pré-frontais do cérebro com a psicopatia. Um segundo resultado envolveu não a atividade cerebral, mas a estrutura do cérebro: supostamente o tamanho do corpo estriado é, em média, maior em criminosos. Raine também alega que a genética começa a “identificar quais genes específicos promovem um comportamento [criminoso]“.
Em matéria de buchicho, isso é o análogo científico de um casamento de uma Kardashian*.
Portanto, existem duas partes na abordagem de Raine: genes e cérebros. Este post vai se concentrar nos genes criminosos. A próxima edição trará um olhar rigoroso sobre as conclusões dos scans cerebrais.
Aqui temos uma estratégia simples: se você encontrar associações entre um gene e os indivíduos que são criminosos, então, terá identificado o “gene criminoso”. Agora tudo o que temos fazer é triar pessoas para ver se elas carregam o gene. Pessoas assim identificadas podem ser monitoradas ou receberem terapia profilática. Ou enviadas para a Austrália**. Oh, espere! Não nos dias de hoje! De qualquer forma, o crime poderia ser muito reduzido através da prevenção. Caramba!
Embora o papo de “genes para”, preferido pelos psicólogos evolutivos, tenha sido há muito espetado, surrado e espancado pelos geneticistas, ele persiste como o proverbial mal cheiro. Aqui vai o X do problema:
Que algumas características são herdáveis é obviamente verdadeiro. Porque meus pais eram seres humanos, eu não sou um texugo, eu sou um ser humano. Além disso, tenho a altura do meu pai – ele era alto, minha mãe era baixa. Existe um “gene para” altura? Bem, genes reais quase nunca jogam pelas regras simples dos “genes para”. Acontece que há pelo menos cinquenta genes conhecidos que têm algum papel na altura humana e, mesmo assim, estes cinquenta são apenas parte da história. Seja lá o que eu tenha do meu pai, não foi um ou dois genes que me fizeram alta. Mais provavelmente foi um conjunto de genes que interage com outras redes de genes que interagem com o ambiente, e, pronto … Acabei alta. E sobre as características comportamentais? Será que eu herdei o comedimento do meu pai? Bem, ele era um escocês étnico comedido, escoceses tendem a ser comedidos, sou comedida, então, eu acho que herdei um gene do comedimento.
Vamos a passos cautelosos. Eu posso realmente ter herdado uma rede de genes associados a microestrutura do cérebro ligada a vários traços de personalidade e, portanto, ao comportamento. Talvez não para o comedimento como tal, mas talvez para algum traço muito mais geral, como a aversão ao risco que, em um determinado contexto, chamamos de comedimento. Estudos com gêmeos, como Raine observa apropriadamente, demonstram que existem ligações genômico-comportamentais. Rastrear as ligações de causalidade, no entanto, têm sido algo traiçoeiro, mesmo em animais simples para comportamentos altamente conservados controlados pelo cérebro, tais como ciclos de sono-vigília. O problema é que que a rota do meu genoma para o meu comportamento é mais parecida com um caminho através de um matagal de amoras em constante mudança do que um caminho claro direto do gene para a proteína, do cérebro para o comportamento. Encontrar o caminho não é impossível, mas exige uma série de cuidados.
O gene do comedimento é um grande mal entendido: Aí vai o porquê, na forma de uma parábola:
Uma parábola da agressividade nas moscas de fruta [1]
Há muito tempo, na década de 1990, uma conexão entre um neuromodulador, serotonina, e a agressividade foi observada em moscas da fruta e em camundongos. Elevar experimentalmente os níveis de serotonina usando drogas ou técnicas de manipulação genéticas aumentava a agressividade das mosca de fruta; silenciar geneticamente os circuitos da serotonina diminuía a agressividade. Estes resultados estão, além disso, de acordo com experiências em camundongos, sugerindo conservação de mecanismos para a agressão ao longo da mudança evolutiva. Diante destes dados, você pode prever que o gene que expressa a serotonina deve ser conhecido como o “gene para a agressividade” – ou mesmo, se você for ousado, o “gene para crime violento”. Isso deixou muitos geneticistas muito animados. Mas os cientistas mais cautelosos perguntaram-se se isso poderia ser tão simples assim. Assim, dois desses ‘cautelosos’ decidiram testar a ideia. [2]
Os geneticistas, os ‘cautelosos’, Herman Dierick e Ralph Greenspan [3] cruzaram seletivamente moscas agressivas. Depois de 21 gerações os machos das moscas de fruta eram 30 vezes mais agressivos que as moscas selvagens. Em seguida, eles compararam os
perfis de expressão gênica das moscas agressivas com o das suas primas mais dóceis usando técnicas moleculares (análise de microarranjos). Caso a serotonina fosse a ‘molécula da agressividade’ e o gene para a produção de serotonina fosse o ‘gene da agressividade’, este experimento revelaria isso.
O resultado surpreendente foi que nenhum gene pode ser especificamente associado com o aumento da agressividade. Em vez disso, pequenas diferenças de expressão foram encontradas em cerca de 80 genes diferentes. [4] Que genes eram esses? Nenhum dos genes para a regulação da expressão de serotonina. Muitos dos genes cuja expressão havia mudado eram conhecidos por desempenhar um papel numa miscelânea de processos fenotípicos – formação da cutícula, contração muscular, metabolismo de energia, ligação ao RNA, ligação ao DNA, desenvolvimento de uma variedade de estruturas, incluindo citoesqueleto – mas muitos outros genes tinham funções desconhecidas. Nenhum único gene por si só parecia fazer muita diferença para o comportamento agressivo.
Como isso pode ser assim, tendo em vista os experimentos anteriores que mostraram que elevar os níveis de serotonina aumentava a agressividade? O ponto crucial é que a relação entre genes e estruturas cerebrais não reflete remotamente um modelo simples de “gene para”. Os genes são parte de uma rede, e há interações entre os elementos da rede e deles com o meio ambiente. Este é um enorme desafio para um psicólogo, como Jonathan Haidt, que afirma que existem genes para liberais e conservadores (não estou inventando isso), sem mencionar para o neurocientista Adrian Raine que apresenta seu ponto de vista, talvez com simplicidade relutante, em termos de genes que promovem um comportamento criminal.
Tenha em mente que a serotonina é uma molécula muito antiga. É importante em um variado conjunto de funções do cérebro e do corpo: a lista inclui o sono, o humor, a motilidade visceral (como as contrações do estômago e do intestino), as funções da bexiga, função cardiovascular, as respostas ao estresse, a indução da proliferação de músculo liso no pulmão durante o desenvolvimento embrionário e a regulação das respostas agudas e crônicas a baixos níveis de oxigênio (hipóxia). [5]
O objetivo desta lista é dramatizar a diversidade das funções da serotonina e, portanto, a inadequação gritante do rótulo de “gene para a agressão”. Esta parábola ilustra por que estudos de associação devem ser avaliados com muita cautela. A diversidade de funções da serotonina ajuda a explicar como é que a mudança de seus níveis pode ter efeitos generalizados em todo o cérebro e no corpo. Incluindo mudança no comportamento agressivo. As quais ocorreriam por que estas alterações podem propagar-se em cascata para outros efeitos, os quais, por sua vez, podem exercer uma influência no comportamento agressivo.
A moral da parábola da agressividade na mosca da fruta é que é fácil especular sobre um “gene para” a agressividade, com base apenas na observação do comportamento e, talvez, a partir de uma intervenção, como a alteração experimentalmente o nível de serotonina. Mas a menos que você faça os testes certos, você não tem ideia se a sua especulação vai perdurar.
Se a relação entre genes e agressividade é que bagunçada em drosófilas, qual seriam as chances de que o modelo simples “gene para o comportamento criminal” aplique-se aos seres humanos? Nem mesmo marginalmente provável. Isto não quer dizer que os genes não façam diferença para um comportamento agressivo. Eles absolutamente fazem, como os resultados da seleção de Dierick e Greenspan também mostram claramente. Mas a relação causal entre um gene e as estruturas cerebrais envolvidas no comportamento agressivo envolve uma rede grande e elaborada de elementos que interagem. Além disso, algumas destas estruturas cerebrais são responsivas ao sistema de recompensa, que modula a probabilidade do comportamento agressivo em relação a outros seres humanos como uma função de sensibilidade às normas culturais. Finalmente, a conexão pode ser melhor compreendida não como uma ligação com o comportamento criminoso como tal, mas para alguma característica mais geral, como a susceptibilidade a impulsividade em contextos que envolvem medo ou raiva. Tal como acontece com o comedimento.
Ainda em modo de ‘avaliar carros usados’, vamos considerar a alegação concreta de Raine sobre o genoma humano, ou seja, que os indivíduos com uma variante para o gene da enzima monoamina-oxidase-A (MAOA) são aptos a serem violentos, se eles estiverem sujeitos a um criação abusiva. As variantes produzem níveis mais baixos da enzima MAO. A ligação entre as variantes da MAOA e a violência recai na investigação epidemiológica feita por Caspi, Moffitt e seus colegas (Science, 2002). Eles cuidadosamente monitoraram, desde o nascimento até por volta da meia idade, uma população altamente homogênea de homens da Nova Zelândia. Estudos de replicação, entretanto, levantaram inevitáveis complicações. Por exemplo, o efeito da interação do gene da MAOA vs abuso pode ser específico para caucasianos, e não é universal nem mesmo nessa população. Neste domínio, as conclusões ainda não são definitivas, embora dados adicionais devam, eventualmente, resolver a questão.
Outros estudos sugerem que o abuso que aumenta o risco de violência na variante MAOA precisa ser específico – não apenas, por exemplo, abuso parental, mas sexual, por exemplo. Além disso, há muito têm sido aceito que abuso e negligencia, quaisquer sejam seus genes, são fatores de risco para o mal comportamento subsequente. O abuso não é bom para qualquer cérebro em desenvolvimento. O risco poder ser relativamente maior para variantes genéticas particulares, incluindo, mas não apenas, o gene da MAOA.
Os dados da MAOA e de comportamento são inquestionavelmente importantes e fascinantes. Mas não finjamos que fizemos um drone*** quando ainda estamos pregando escoras em um planador. Concluir que a variante MAOA é um gene para o comportamento criminoso é uma forçação de barra, para colocar as coisas de forma educada.
A ambição de identificar os grupos de risco para o comportamento criminoso é louvável, porque a prevenção é geralmente preferível à cura, pelo menos, tão longo a prevenção não seja por si mesma catastrófica. Para deixar claro, a investigação nesta área é ao mesmo tempo muito difícil e muito importante. Tiremos o chapéu para aqueles que estão tentando, mas vaiemos as conclusões exageradas que são propensas a nos enganar.
Notas:
1. Esta seção foi adaptada do meu livro, Braintrust: what Neuroscience Tells us About Morality (Princeton University Press, 2011), pp. 97-101.
2. Para uma introdução legível e cientificamente robusta, veja Jonathan Flint, Ralph J. Greenspan, e Kenneth S. Kendler. (2010). How Genes Influence Behavior. New York: Oxford University Press. Para outros artigos que trazem um ponto de vista relacionado, Risch, N., and Merikangas, K. (1996). The future of genetic studies of complex human diseases. Science 273, 516–1517; Colhoun, H. M., McKeigue, P. M., and Smith, G. D. (2003). Problems of reporting genetic associations with complex outcomes. Lancet 361, 865–872. Hattersley, A. T., and McCarthy, M. I. (2005). What makes a good genetic association study? Lancet 366, 1315–1323.
3. Herman A. Dierick and Ralph J. Greenspan, “Molecular Analysis of Flies Selected for Aggressive Behavior,” Nature Genetics 38, no. 9 (2006): 1023-31.
4. Isso não quer, necessariamente, dizer que todos os 80 genes estejam relacionados ao fenótipo comportamental em questão, já que a diferença em alguns genes pode ser decorrência deles terem ‘pego carona’ juntamente com os genes que foram selecionados.
5. Dennis L. Murphy et al., “How the Serotonin Story Is Being Rewritten by New Gene-Based Discoveries Principally Related to Slc6a4, the Serotonin Transporter Gene, Which Functions to Influence All Cellular Serotonin Systems,” Neuropharmacology 55, no. 6 (2008): 932-60.
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Patricia Smith Churchland é professora emérita de Filosofia na UCSD e professora adjunta no Instituto Salk. Ela tem um BA da Universidade da Columbia Britânica, mestrado na Universidade de Pittsburgh, e um B. Phil. da Universidade de Oxford. Sua curiosidade sobre as implicações filosóficas dos avanços na ciência do cérebro amadureceram quando ela era um professora júnior na Universidade de Manitoba, no Canadá. Auxiliada pelo financiamento para o aperfeiçoamento docente Woodrow Wilson (1975-1976), ela estudou neurologia na escola de medicina da Universidade de Manitoba e aprendeu neurociência básica no laboratório Jordan da medula espinhal. Ela e seu colega-marido, Paul Churchland, entraram para a Universidade da Califórnia, em San Diego, em 1984, onde ela foi pioneira no ramo da neurofilosofia. Para saber mais. Patricia S. Churchland é autora de novo livro a ser lançado, Touching a Nerve: The Self as Brain publicado pela W.W. Norton.
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Nota do tradutor:
*As Kardashian são três irmãs, filhas de personalidades famosas da sociedade norte-americana, que alcançaram o status de celebridades instantâneas na TV e da mídia de entretenimento e fofocas, sendo conhecidas por estrelarem vários ‘reallity shows‘ e por causa de seus relacionamentos românticos que recebem sempre uma grande e desproporcional atenção da mídia.
** A Austrália, no começo de sua colonização pelos Europeus, foi usada como colônia penal, tendo sido mandados para lá diversos condenados. Daí o comentário de Churchland.
*** Drones são veículos aéreos não tripulados altamente sofisticados que são controlados remotamente.
Título Original: Criminal Genes and Criminal Brains
Fonte: Psychology Today
Tradução: Rodrigo Véras