Eça de Queiroz - Livros completos
"Alves & Cia."

 

 

 

 

Para despertar, aviar a lentidão das bichas, alguns peões atiravam pedras à água lodosa. Já alguns Cavaleiros espanhóis rosnavam impacientes com a delonga, naquela cova abafada. Outros, descendo agachados à borda da lagoa, para mostrar que as faladas bichas nunca acudiriam, mergulhavam lentamente, n'água negra, as mãos descalçadas, que depois sacudiam, rindo e mofando do Sabedor... Mas de repente um estremeção sacudiu o corpo do Bastardo; os seus rijos músculos, no furioso esforço de se desprenderem, inchavam entre as cordas, como cobras que se arqueiam; dos beiços arreganhados romperam, em rugidos, em grunhidos, ultrajes e ameaças contra Tructesindo covarde, e contra toda a raça de Ramires, que ele emprazava, dentro do ano, para as labaredas do Inferno! Indignado, um Cavaleiro de Santa Irenéia agarrou uma besta de garrunche, a que retesou a corda.

 

         Mas D. Garcia deteve o arremesso:

 

         - Por Deus, amigo! Não roubeis às sanguessugas nem uma pinga daquele sangue fresco!... Vede como vêm! vede como vêm!

 

         Na água espessa, em torno às coxas mergulhadas do Bastardo, um frêmito corria, grossas bolhas empolavam - e delas, molemente, uma bicha surdiu, depois outra e outra, luzidias e negras, que ondulavam, se colavam à branca pele do ventre, donde pendiam, chupando, logo engrossadas, mais lustrosas como lento sangue que já escorria. O Bastardo emudecera - e os seus dentes batiam estridentemente. Enojados, até rudes peões desviaram a face cuspindo para as urzes. Outros, porém, chasqueavam, assuavam as bichas, gritando: - a ele, donzelas! a ele! E o gentil Çamora de Cendufe clamava rindo contra tão insossa morte! Por Deus! Uma apostura de bichas, como a enfermo de almorreimas. Nem era sentença de Rico-homem - mas receita de herbanista mouro!

 

         - Pois que mais quereis, meu Leonel? - acudiu alegremente o Sabedor, resplandecendo. - Morte é esta para se contar em livros! E não tereis este inverno serão à lareira, por todos os solares de Minho a Douro, em que não volte a história deste Pego, e deste feito! Olhai nosso primo Tructesindo Ramires! Formosos tratos presenciou decerto em tão longo lidar de armas!... E como goza! tão atento! tão maravilhado!

 

         Na encosta do outeiro, junto do seu balsão, que o Alferes cravara entre duas pedras, e como ele tão quedo, o velho Ramires não despregava os olhos do corpo do Bastardo, com deleite bravio, num fulgor sombrio. Nunca ele esperara vingança tão magnífica! O homem que atara seu filho com cordas, o arrastara numas andas, o retalhara a punhal diante das barbacãs da sua Honra - agora, vilmente nu, amarrado também como cerdo, pendurado dum pilar, emergido numa água suja, e chupado por sanguessugas, diante de duas mesnadas, das melhores de Espanha, que miravam, que mofavam! Aquele sangue, o sangue da raça detestada, não o bebia a terra revolta numa tarde de batalha, escorrendo de ferida honrada, através de rija armadura - mas, gota a gota, escuramente e molemente se sumia, sorvido por nojentas bichas, que surdiam famintas do lodo e no lodo recaíam fartas, para sobre o lodo bolçar o orgulhoso sangue que as enfartara. Num charco, onde ele o mergulhara, viscosas bichas bebiam sossegadamente o Cavaleiro de Baião! Onde houvera homizio de solares fundado em desforra mais doce?

 

         E a fera alma do velho acompanhava, com inexorável gozo, as sanguessugas subindo, espalhadamente alastrando por aquele corpo bem amarrado, como seguro rebanho pela encosta da colina onde pasta. O ventre já desaparecia sob uma camada viscosa e negra, que latejava, reluzia na umidade morna do sangue. Uma fila sugava a cinta, encovada pela ânsia, donde sangue se esfiava, numa franja lenta. O denso pêlo ruivo do peito, como a espessura duma selva, detivera muitas, que ondulavam, com um rasto de lodo. Um montão enovelado sangrava um braço. As mais fartas, já inchadas, mais reluzentes, despegavam, tombavam molemente; mas logo outras, famintas, se aferravam. Das chagas abandonadas o sangue escorria delgado, represo nas cordas, donde pingava como uma chuva rala. Na escura água boiavam gordas postemas de sangue esperdiçado. E assim sorvido, ressumando sangue, o malfadado ainda rugia, através ultrajes imundos, ameaças de mortes, de incêndios, contra a raça dos Ramires! Depois, com um arquejar em que as cordas quase estalavam, a boca horrendamente escancarada e ávida, rompia aos roucos urros, implorando água, água! No seu furor as unhas, que uma volta de amarras lhe colara contra as fortes coxas, esfarrapavam a carne, cravavam-se na fenda esfarrapada, ensopadas de sangue.

 

         E o furioso tumulto esmorecia num longo gemer cansado - até que parecia adormecido nos grossos nós das cordas, as barbas reluzindo sob o suor que as alagara como sob um grosso orvalho, e entre elas a espantada lividez dum sorriso delirado.

 

         No entanto já na hoste derramada pelos cerros, como por um palanque, se embotara a curiosidade bravia daquele suplício novo. E se acercava a hora da ração de meridiana. O Adail de Santa Irenéia, depois o Almocadém Espanhol, mandaram soar os anafins. Então todo o áspero ermo se animou com uma faina de arraial. O almazém das duas mesnadas parara por detrás dos morros, numa curta almargem de erva, onde um regato claro se arrastava nos seixos, por entre as raízes de amieiros chorões. Numa pressa esfaimada, saltando sobre as pedras, os peões corriam para a fila dos machos de carga, recebiam dos uchões e estafeiros a fatia de carne, a grossa metade dum pão escuro; e, espalhados pela sombra do arvoredo, comiam com silenciosa lentidão, bebendo da água do regato pelas concas de pau. Depois preguiçavam, estirados na relva - ou trepavam em bando pela outra encosta dos morros, através do mato, na esperança de atravessar com um virote alguma caça erradia. Na ribanceira, diante da lagoa, os Cavaleiros, sentados sobre grossas mantas, comiam também, em roda dos alforjes abertos, cortando com os punhais nacos de gordura nas grossas viandas de porco, empinando, em longos tragos, as bojudas cabaças de vinho.

 

         Convidado por D. Pedro de Castro, o velho Sabedor descansava, partilhando duma larga escudela de barro, cheia de bolo papal, dum bolo de mel e flor de farinha, onde ambos enterravam lentamente os dedos, que depois limpavam ao forro dos morriões. Só o velho Tructesindo não comia, não repousava, hirto e mudo diante do seu pendão, entre os seus dois mastins, naquele fero dever de acompanhar, sem que lhe escapasse um arrepio, um gemido, um fio de sangue, a agonia do Bastardo. Debalde o Castelão, estendendo para ele um pichel de prata, gabava o seu vinho de Tordesilhas, fresco como nenhum de Aquilat ou de Provins, para a sede de tão rija arrancada. O velho Rico-homem nem atendera: - e D. Pedro de Castro, depois de atirar dois pães aos alões fiéis, recomeçou discorrendo com Garcia Viegas sobre aquele teimoso amor do Bastardo por Violante Ramires que arrastara a tantos homizios e furores.

 

         - Ditosos nós, Sr. D. Garcia! Nós a quem a idade e o quebranto e a fartura já arredam dessas tentações... Que a mulher, como me ensinava certo físico quando eu andava com os Mouros, é vento que consola e cheira bem, mas tudo enrodilha e esbandalha. Vede como os meus por elas penaram! Só meu pai, com aquela desvairança de zelos, em que matou a cutelo minha doce madre Estevaninha. E ela tão santa, e filha do Imperador! A tudo, tudo leva, a tonta ardência! Até a morrer, como este, sugado por bichas, diante duma hoste que merenda e mofa. E por Deus, quanto tarda em morrer, Sr. D. Garcia!

 

         - Morrendo está, Sr. D. Pedro de Castro. E já com o demo ao lado para o levar!

 

         O Bastardo morria. Entre os nós das cordas ensangüentadas todo ele era uma ascorosa avantesma escarlate e negra com as viscosas pastas de bichas que o cobriam, latejando com os lentos fios de sangue que de cada ferida escorriam, mais copiosos que os regos de umidade por um muro denegrido.

 

         O desesperado arquejar cessara, e a ânsia contra as cordas, e todo o furor. Mole e inerte como um fardo, apenas a espaços esbugalhava horrendamente os olhos vagarosos, que revolvia em torno com enevoado pavor. Depois a face abatia, lívida e flácida, com o beiço pendurado, escancarando a boca em cova negra, de onde se escoava uma baba ensangüentada. E das pálpebras novamente cerradas, intumescidas, um muco gotejava, também como de lágrimas engrossadas com sangue.

 

         A peonagem, no entanto, voltando da ração, reatulhava a ribanceira, pasmava, com rudes chufas para o corpo pavoroso que as bichas ainda sugavam. Já os pajens recolhiam mantéis e alforjes. D. Pedro de Castro descera do cabeço com o Sabedor até a borda da água lodosa, onde quase mergulhava os sapatos de ferro, para contemplar, mais de cerca, o agonizante de tão rara agonia! E alguns senhores, estafados com a delonga, afivelando os gibanetes, murmuravam: - "Está morto! Está acabado!"

 

         Então Garcia Viegas gritou ao Coudel dos Besteiros:

 

         - Ermigues, ide ver se ainda resta alento naquela postema.

 

         O Coudel correu pelo passadiço de traves, e arrepiado de nojo palpou a lívida carne, acercou da boca, toda aberta, a lâmina clara da adaga que desembainhara.

 

         - Morto! morto! - gritou.

 

         Estava morto. Dentro das cordas que o arroxeavam o corpo escorregava, engelhado, chupado, esvaziado. O sangue já não manava, havia coalhado em postas escuras, onde algumas bichas teimavam latejando, reluzindo. E outras ainda subiam, tardias. Duas, enormes, remexiam na orelha. Outra tapava um olho. O Claro-Sol não era mais que uma imundície que se decompunha. Só a madeixa dos cabelos louros, repuxada, presa na argola, reluzia com um lampejo de chama, como rastro deixado pela ardente alma que fugira.

 

         Com a adaga ainda desembainhada, e que sacudia, o Coudel avançou para o senhor de Santa Irenéia, bradou:

 

         - Justiça está feita, que mandastes fazer no perro matador que morreu!

 

         Então o velho Rico-homem, atirando o braço, o cabeludo punho, com possante ameaça, bradou, num rouco brado que rolou por penhascos e cerros:

 

         - Morto está! E assim morra de morte infame quem traidoramente me afronte a mim e aos da minha raça!

 

         Depois, cortando rigidamente pela encosta do cerro, através do mato, e com um largo aceno ao Alferes do Pendão:

 

         - Afonso Gomes, mandai dar às buzinas. E a cavalo, se vos praz, Sr. D. Pedro de Castro, primo e amigo, que leal e bom me fostes!...

 

         O Castelão ondeou risonhamente o guante:

 

         - Por Santa Maria, primo e amigo! que gosto e honra os recebi de vós. A cavalo pois se vos praz! Que nos promete aqui o Sr. D. Garcia vermos ainda, com sol muito alto, os muros de Montemor.

 

         Já a peonagem cerrava as quadrilhas, os donzéis de armas puxavam para a ribanceira os ginetes folgados que a vasta água escura assustava. E, com os dois balsões tendidos, o Açor negro, as Treze Arruelas, a fila da cavalgada atirou o trote pelo barranco empinado, donde as pedras soltas rolavam. No alto, alguns Cavaleiros ainda se torciam nas selas para silenciosamente remirarem o homem de Baião, que lá ficava, amarrado ao pilar, na solidão do Pego, a apodrecer. Mas quando a ala dos besteiros e fundibulários de Santa Irenéia desfilou, uma rija grita rompeu, com chufas, sujas injúrias ao "perro matador". A meio da escarpa, um besteiro, virando, retesou furiosamente a besta. A comprida garruncha apenas varou a água. Outra logo ziniu, e uma bala de funda, e uma seta barbada - que se espetou na ilharga do Bastardo, sobre um negro novelo de bichas. O Coudel berrou: "cerra! anda!" A récua das azêmolas de carga avançava, sob o estalar dos látegos; os moços da carriagem apanhavam grossos pedregulhos, apedrejavam o morto. Depois os servos carreteiros marcharam, nos seus curtos saios de couro cru, balançando um chuço curto: - e o capataz apanhou simplesmente esterco das bestas, que chapou na face do Bastardo sobre as finas barbas de ouro.

 

         XI

 

            Quando Gonçalo, estafado e já todo o ardor bruxuleando, retocou este derradeiro traço da afronta - a sineta no corredor repicava para o almoço. Enfim! Deus louvado! eis finda essa eterna Torre de Ramires! Quatro meses, quatro penosos meses desde junho, trabalhara na sombria ressurreição dos seus avós bárbaros. Com uma grossa e carregada letra, traçou no fundo da tira Finis. E datou, com a hora, que era de meio-dia e quatorze minutos.

 

         Mas agora, abandonada a banca onde tanto labutara, não sentia o contentamento esperado. Até esse suplício do Bastardo lhe deixara uma aversão por aquele remoto mundo Afonsino, tão bestial, tão desumano! Se ao menos o consolasse a certeza de que reconstituíra, com luminosa verdade, o ser moral desses avós bravios... Mas quê! bem receava que sob desconcertadas armaduras, de pouca exatidão arqueológica, apenas se esfumassem incertas almas de nenhuma realidade histórica!... Até duvidava que sanguessugas recobrissem, trepando dum charco, o corpo dum homem, e o sugassem das coxas às barbas, enquanto uma hoste mastiga a ração!... Enfim, o Castanheiro louvara os primeiros Capítulos. A Multidão ama, nas Novelas, os grandes furores, o sangue pingando; e em breve os Anais espalhariam, por todo o Portugal, a fama daquela Casa ilustre, que armara mesnadas, arrasara castelos, saqueara comarcas por orgulho de pendão, e afrontara arrogantemente os Reis na cúria e nos campos de lide. O seu verão, pois, fora fecundo. E para o coroar, eis agora a Eleição, que o libertava das melancolias do seu buraco rural...

 

         Para não retardar as visitas ainda devidas aos influentes, e também para espairecer, logo depois do almoço montou a cavalo - apesar do calor, que desde a véspera, e naquele meado de outubro, esmagava a aldeia com o refulgente peso duma canícula de agosto. Na volta da estrada dos Bravais um homem gordo, de calça branca enxovalhada, que se apressava, bufando, sob o seu guarda-sol de paninho vermelho, deteve o Fidalgo com uma cortesia imensa. Era o Godinho, amanuense da Administração. Levava um ofício urgente ao Regedor dos Bravais, e agora corria à Torre de mandado do Sr. Administrador...

 

         Gonçalo recuou a égua para a sombra duma carvalha:

 

         - Então que temos, amigo Godinho?

 

         O Sr. Administrador anunciava a S. Exa. que o maroto do Ernesto, o valentão de Nacejas, em tratamento no Hospital de Oliveira, melhorara consideravelmente. Já lhe repegara a orelha, a boca soldava... E, como se procedeu à querela, o patife passava da enfermaria para a cadeia...

 

         Gonçalo protestou logo, com uma palmada no selim:

 

         - Não senhor! Faça o obséquio de dizer ao Sr. João Gouveia que não quero que se prenda o homem! Foi atrevido, apanhou uma dose tremenda, estamos quites.

 

         - Mas Sr. Gonçalo Mendes...

 

         - Pelo amor de Deus, amigo Godinho! Não quero, e não quero... Explique bem ao Sr. João Gouveia... Detesto vinganças. Não estão nos meus hábitos, nem nos hábitos da minha família. Nunca houve um Ramires que se vingasse... Quero dizer, sim, houve, mas... Enfim explique bem ao Sr. João Gouveia. De resto eu logo o encontro, na Assembléia... Bem basta ao homem ficar desfeado. Não consinto que o apoquentem mais!... Detesto ferocidades.

 

         - Mas...

 

         - Esta é a minha decisão, Godinho!

 

         - Lá darei o recado de V. Exa..

 

         - Obrigado. E adeus!... Que calor, bem!

 

         - De rachar, Sr. Gonçalo Mendes; de rachar!

 

         Gonçalo seguiu, revoltado pela idéia de que o pobre valentão de Nacejas, ainda moído, com a orelha mal soldada, baixasse à sórdida enxovia de Vila-Clara, para dormir sobre uma tábua. Pensou mesmo em galopar para Vila-Clara, reter o zelo legal do João Gouveia. Mas perto, adiante do lavadouro, era a casa de um Influente, o João Firmino, carpinteiro e seu compadre. E para lá trotou, apeando ao portal do quinteiro. O compadre Firmino largara cedo para a Arribada, onde trabalhava nas obras do lagar do Sr. Esteves. E foi a comadre Firmina que correu da cozinha, obesa e luzidia, com dois pequenos dependurados das saias e mais sujos que esfregões. O Fidalgo beijou ternamente as duas faces ramelosas:

 

         - E que rico cheiro a pão fresco, ó comadre! Foi a fornada, bem? Pois então grande abraço ao Firmino. E que se não esqueça! A Eleição vem para o outro domingo. Lá conto como voto dele. E olhe que não é pelo voto, é pela amizade.

 

         A comadre arreganhava os dentes magníficos num regalado e gordo riso: - "Ai o Fidalgo podia ficar seguro! Que o Firmino já jurara, até ao Sr. Regedor, que para o Fidalgo era todo o sítio a votar, e quem não fosse a amor ia a pau". O Fidalgo apertou a mão da comadre - que do degrau do quinteiro, com os dois pequenos enrodilhados nas saias, e o gordo riso mais embevecido, seguiu a poeira da égua como o sulco dum Rei benéfico.

 

         E depois nas outras visitas, ao Cerejeira, ao Ventura da Chiche, encontrou o mesmo fervor, os mesmos sorrisos luzindo de gosto. "O quê! para o Fidalgo! Isso tudo! E nem que fosse contra o Governo!" - Na tasca do Manuel da Adega, um rancho de trabalhadores bebia, já ruidoso, com as jaquetas atiradas para cima dos bancos; o Fidalgo bebeu com eles, galhofando, gozando sinceramente a pinga verde e o barulho. O mais velho, um avejão escuro, sem dentes, e a face mais engelhada que uma ameixa seca, esmurrou com entusiasmo o balcão: - "Isto, rapazes, é Fidalgo que, quando um pobre de Cristo escalavra a perna, lhe empresta a égua, e vai ele ao lado mais duma légua a pé, como foi como Solha! Rapazes! isto é Fidalgo para a gente ter gosto!" As saúdes atroaram a venda. E quando Gonçalo montou, todos o cercavam como vassalos ardentes, que a um aceno correriam a votar - ou a matar!

 

         Em casa do Tomás Pedra, a avó Ana Preta, uma velha entrevada, muito velha e trêmula, rompeu a choramingar por o seu Tomás andar para o Olival quando o Fidalgo o visitava. "Que aquilo era como visita de santo!"

 

         - Ora essa, tia Pedra! Pecador, grande pecador!

 

         Dobrada na cadeirinha baixa, com as farripas brancas descendo do lenço, pela face toda chupada de grelhas e peluda, a tia Ana bateu no joelho agudo:

 

         - Não senhor! não senhor! que quem mostrou aquela caridade pelo filho do Casco merece estar em altar!

 

         O Fidalgo ria, beijocava pequenadas encardidas, apertava mãos ásperas e rugosas como raízes, acendia o cigarro à brasa das lareiras, conversando, com intimidade, das moléstias e dos derriços. Depois, no calor e pó da estrada, pensava: - "É curioso! parece haver amizade, nesta gente!"

 

         Às quatro horas, derreado, decidiu cessar o giro, recolher à Torre pela estrada mais fresca da Bica Santa. E passara o lugarejo do Cerdal, quando na volta aguda do Caminho, rente ao souto de azinheiros, quase esbarrou com o Dr. Júlio, também a cavalo, também no seu giro, de quinzena de alpaca, alagado em suor, debaixo dum guarda-sol de seda verde. Ambos detiveram as éguas, se saudaram amavelmente.

 

         - Muito gosto em o ver, Sr. Dr. Júlio...

 

         - Igualmente, com muita honra, Sr. Gonçalo Ramires...

 

         - Então também na tarefa?...

 

         O Dr. Júlio encolheu os ombros:

 

         - Que quer V. Exa.? Se me meteram nesta! E sabe V. Exa. como isto acaba?... Acaba em eu mesmo, no outro domingo, votar em V. Exa..

 

         O Fidalgo riu. Ambos se debruçaram, para se apertarem as mãos com alegria, com estima.

 

         - Que calor este, Sr. Dr. Júlio!

 

         - Horroroso, Sr. Gonçalo Ramires... E que maçada!

 

         Assim o Fidalgo empregou essa semana nas visitas aos Eleitores - "os grandes e os miúdos". E dois dias antes da Eleição, numa sexta-feira à tarde, com um tempo já macio e fresco, partiu para Oliveira - onde chegara, na véspera, o André Cavaleiro, depois da sua tão longa, tão falada demora em Lisboa.

 

         Nos Cunhais, apenas saltara da caleche, logo se enfureceu ao saber, pelo bom João da Porta - "que as Sras. Lousadas estavam em cima, de visita, com a Sra. D. Graça...

 

         - Há muito?

 

         - Já lá estão pegadas há meia hora boa, meu senhor.

 

         Gonçalo enfiou sorrateiramente para o seu quarto, pensando: - "Que desavergonhadas! Chegou o André, vêm logo cocar!" E já se lavara, mudara o fato cinzento - quando o Barrolo apareceu, esbaforido, desusadamente radiante, de sobrecasaca, de chapéu alto, com as bochechas acesas, alvoroçadamente radiantes:

 

         - Eh, seu Barrolo, que janota!

 

         - Parece bruxedo! - gritou o Barrolo, depois dum abraço, que repetiu, com desacostumado fervor. - Estava agora mesmo para te mandar um telegrama, que viesses...

 

         - Para quê?

 

         O Barrolo gaguejou, com um riso reprimido que o iluminava, o inchava:

 

         - Para quê? Para nada... Quero dizer, para a Eleição! Pois a Eleição é além de amanhã, menino! O Cavaleiro chegou ontem. Agora volto eu do Governo Civil. Estive no Paço com o Sr. Bispo, depois passei pelo Governo Civil... Ótimo, o André! Aparou o bigode, parece mais moço. E traz novidades... Traz grandes novidades!

 

         E o Barrolo esfregava as mãos, num tão faiscante alvoroço, com tanto riso escapando dos olhos e da face reluzente, que o Fidalgo o encarou curioso, impressionado:

 

         - Ouve lá, Barrolinho! Tu tens alguma coisa boa para me anunciar?

 

         Barrolo recuou, negou com estrondo, como quem bruscamente fecha uma porta. Ele? Não! Não sabia nada! Só a Eleição! Na Murtosa votação tremenda...

 

         - Ah! pensei - murmurou Gonçalo. - E a Gracinha?

 

         - A Gracinha também não!

 

         - Também não quê, homem? Como está? Simplesmente como está?

 

         - Ah! está com as Lousadas. Há mais de meia hora, aquelas bêbedas!... Naturalmente por causa do Bazar do Asilo Novo... Esta maçada dos Bazares... E ouve lá, Gonçalinho! Tu ficas até domingo?

 

         - Não, volto amanhã para a Torre.

 

         - Oh!...

 

         - Pois dia de Eleição, homem! devo estar em casa, no meu centro, no meio das minhas freguesias...

 

         - É pena - murmurou o Barrolo. - Logo se sabia juntamente com a Eleição... Eu dava um jantar tremendo...

 

         - Logo se sabia, o quê?

 

         O Barrolo emudeceu, com outro riso nas bochechas, que eram duas brasas gloriosas. Depois novamente gaguejou, gingando:

 

         - Logo se sabia... Nada! O resultado, o apuramento. E grande bródio, grande foguetório. Eu, na Murtosa, abro pipa de vinho.

 

         Então Gonçalo risonhamente prendeu o Barrolo pelos ombros:

 

         - Dize lá, Barrolinho. Dize lá. Tu tens uma coisa boa para contar ao teu cunhado.

 

         O outro escapou, protestando com alarido: Que teima, que tolice. Ele não sabia nada. O André não lhe contara nada!

 

         - Bem - concluiu o Fidalgo, certo de um amável mistério, que pairava. - Então descemos. E se essas carraças das Lousadas ainda estiverem lá pegadas, manda dizer pelo escudeiro à sala, bem alto, à Gracinha, que cheguei, que lhe desejo falar imediatamente no meu quarto; com esses monstros não há considerações.

 

         O Barrolo balbuciou, hesitando:

 

         - O Sr. Bispo gosta delas... Muito amável comigo, ainda há pouco, o Sr. Bispo.

 

         Mas, logo nas escadas, sentiram o piano, Gracinha cantarolando. Já se libertara das Lousadas. Era uma antiga canção patriótica da Vendéia, que outrora, na Torre, ela e Gonçalo entoavam com emoção, quando os inflamava o amor Fidalgo e romântico dos Bourbons e dos Stuarts:

 

         Monsieur de Charette a dit à ceux d'Ancenes

 

         "Mes amis!..."

 

         Monsieur de Charette a dit...

 

         Gonçalo franziu vagarosamente o reposteiro da sala, rematando a estrofe, com o braço erguido como uma bandeira:

 

         "Mes amis!

 

         Le Rai va rammener les Fleurs de Lys!

 

         Gracinha saltou do mocho, numa surpresa.

 

         - Não te esperávamos! Imaginei que passavas a Eleição na Torre... E por lá?

 

         - Na Torre, tudo bem, com a ajuda de Deus... Mas eu com trabalho imenso. Acabei o meu romance; depois visitas aos Eleitores.

 

         Barrolo, que não sossegava pela sala, rompeu para eles, com o mesmo riso sufocado:

 

         - Queres tu saber, Gracinha? Tem estado este homem, desde que chegou, numa curiosidade, a ferver. Imagina que eu tenho uma boa nova, uma grande nova para lhe contar... Eu não sei nada, a não ser a Eleição! Pois não é verdade, Gracinha?

 

         Gonçalo, muito sério, prendeu o queixo da irmã:

 

         - Sabes tu, dize lá.

 

         Ela sorriu, corada... Não, não sabia nada, só a Eleição.

 

         - Dize lá!

 

         - Não sei... São tolices do José.

 

         Mas então, ante aquele sorriso fraco, rendido, que confessava - o Barrolo não se conteve, desafogou como um morteiro estoura: - Pois bem! sim! com efeito! - Grande novidade! Mas o André, que a trouxera de Lisboa, fresquinha a saltar, queria ele, só ele, causar a surpresa a Gonçalo...

 

         - De modo que eu não posso! Jurei ao André. A Gracinha sabe, que eu já lhe contei ontem... Mas também não pode, também jurou. Só o André. Ele vem logo tomar chá, e rebenta a bomba... Que é uma bomba! e graúda!

 

         Gonçalo, roído de curiosidade, murmurou simplesmente, encolhendo os ombros:

 

         - Bem, já sei, é uma herança! Tens quinze tostões de alvíssaras, Barrolo.

 

         Mas durante o jantar e depois na sala tomando café, enquanto Gracinha recomeçara as velhas canções patrióticas, agora as jacobitas, em louvor dos Stuarts - Gonçalo ansiou pela aparição do Cavaleiro. Nem receava que a esse encontro se misturasse amargura, despeito sufocado. Todo o seu furor contra o Cavaleiro, aceso na dolorosa tarde do Mirante, revolvido na Torre durante torturados dias, logo se dissipara lentamente depois da sua tocante conversa com a irmã, na manhã histórica da briga da Grainha. Gracinha então, com grandes lágrimas de pureza e de verdade, jurara reserva, retraimento. Gonçalo, abandonando Oliveira, mostrava também uma resistência louvável contra o sentimento ou a vaidade que o transviara. Demais ele não podia romper novamente com o Cavaleiro, andando ainda nos mexericos e espantos de Oliveira aquela reconciliação ruidosa que chamara o Cavaleiro à intimidade dos Cunhais. E por fim de que valiam furores ou mágoas? Nenhum rugir ou gemer seu anulariam o mal que se consumara no Mirante - se porventura se consumara. E assim toda a cólera contra o André se dissipara naquela sua leve e doce alma, onde os sentimentos, sobretudo os mais escuros, os mais carregados, sempre facilmente se desfaziam como nuvens em céu de estio...

 

         Mas quando, perto das nove horas, o Cavaleiro penetrou na sala, vagaroso e magnífico, com o bigode encurtado mas mais retorcido, uma gravata vermelha entufando estridentemente no largo peito que entufava, Gonçalo sentiu uma renovada aversão por toda aquela petulância recheada de falsidade - e apenas pôde bater molemente, desenxabidamente, nas costas do velho amigo, que o apertava num abraço de aparatosa ternura. E enquanto André, torcendo as luvas claras, languidamente enterrado na poltrona que o Barrolo lhe achegou com carinho, contava de Lisboa e de Cascais, tão alegre, e partidas de bridge e da Parada e d'El-Rei - Gonçalo revivia a tarde do Mirante, o seu pobre coração a bater contra a persiana mal fechada, a bruta súplica murmurada através daqueles bigodes atrevidos, e emudecera, como empedernido, esmigalhando nervosamente entre os dentes o charuto apagado. Mas Gracinha conservava uma serenidade atenta, sem nenhum dos seus chamejantes rubores, dos seus desgraçados enleios de modo e gesto, apenas levemente seca, duma secura preparada e posta. Depois André aludira muito desprendidamente ao seu regresso a Lisboa, depois da Eleição, "porque o tio Reis Gomes, o José Ernesto, esses cruéis amigos, lhe andavam atirando para os ombros todo o trabalho da Nova Reforma Administrativa".

 

         Entre ele e Gracinha, separados por um curto tapete, parecia cavada uma funda légua de fosso, onde rolara, se afundara todo aquele romance do verão, sem que na face de ambos restasse um afogueado vestígio do seu ardor. E Gonçalo, insensivelmente contente pela aparência, terminou por abandonar a cadeira onde se empedernira, acendeu o charuto na vela do piano, perguntou pelos amigos de Lisboa. Todos (segundo o Cavaleiro) ansiavam pela chegada de Gonçalo.

 

         Lá encontrei também o Castanheiro... Entusiasmado com o teu Romance. Parece que nem no Herculano, nem no Rebelo existe nada tão forte, como reconstrução histórica. O Castanheiro prefere mesmo o teu realismo épico ao do Flaubert, na Salanimbô. Enfim, entusiasmado! E nós, está claro, ardendo por que apareça a sublime obra.

 

         O Fidalgo corou profundamente, murmurando: - "Que tolice!" Depois roçou pela poltrona em que se enterrava o André, afagou suavemente o largo ombro do André:

 

         - Pois, tens feito cá muita falta, meu velho! Há dias passei em Corinde, tive saudades...

 

         Então o Barrolo, que não sossegava, vermelho, a estourar rebolando pela sala, espiando ora o Cavaleiro, ora o Gonçalo, com um riso mudo e ávido, não se conteve mais, gritou:

 

         - Bem, basta de prólogos... Vamos lá agora à grande surpresa, André! Eu tenho estado toda a tarde a rebentar... Mas enfim, jurei e calei! Agora não posso... Vamos lá. E tu, Gonçalinho, vai preparando os quinze tostões.

 

         Gonçalo, com a curiosidade de novo refervendo, apenas sorria, desprendidamente:

 

         - Com efeito! Parece que tens uma bela novidade.

 

         O Cavaleiro alargou lentamente os braços, sempre enterrado na vasta poltrona, sem pressa:

 

         - Oh! é a coisa mais simples, mais natural... A Sra. D. Graça já sabe, não é verdade?... Não há motivo para surpresa... Tão legitima, tão natural!

 

         Gonçalo exclamou, já impaciente:

 

         - Mas enfim, venha lá, dize.

 

         O Cavaleiro insistia, indolente. Todo o espanto era que só agora se pensasse em a realizar, coisa tão devida, tão adequada. Pois não lhe parecia à Sra. D. Graça?

 

         Gonçalo, numa brasa, berrou:

 

         - Mas quê? que diabo?

 

         O Cavaleiro, que se despegara vagarosamente da poltrona, puxou os punhos, e diante de Gonçalo, no silêncio atento, alteando o peito, grave, quase oficial, começou:

 

         - Meu tio Reis Gomes, e o José Ernesto, tiveram uma idéia muito natural, que comunicaram a El-Rei, e que El-Rei aprovou... Que aprovou mesmo ao ponto de a apetecer, de se assenhorear dela, de desejar que fosse só sua. E hoje é só de El-Rei. El-Rei pois pensou, como nós pensamos, que um dos primeiros Fidalgos de Portugal, decerto mesmo o primeiro, devia ter um título que consagrasse bem a antigüidade ilustre da Casa, e consagrasse também o mérito superior de quem hoje a representa... Por isso, meu querido Gonçalo, já te posso anunciar, e quase em nome de El-Rei, que vais ser Marquês de Treixedo.

 

         - Bravo! bravo! - bramou o Barrolo, com palmas delirantes. - Saltem para cá os quinze tostões, Sr. Marquês de Treixedo!

 

         Uma onda de sangue cobria a fina face de Gonçalo. Num relance sentiu que o Título era um dom do Cavaleiro, não ao chefe da Casa de Ramires, mas ao irmão complacente de Gracinha Ramires... E sobretudo sentia a incoerência de que, ao chefe duma Casa dez vezes secular, mãe de Dinastias, edificadora do Reino, com mais de trinta dos seus varões mortos sob a armadura, se atirasse agora um oco título, através do Diário do Governo, como a um tendeiro enriquecido que subsidiou eleições. Todavia saudou o Cavaleiro, que esperava a efusão, os abraços: - Oh! Marquês de Treixedo! certamente muito elegante, muito amável... Depois, esfregando as mãos, com um sorriso de graça e de espanto... Mas, meu caro André, com que autoridade me faz El-Rei Marquês de Treixedo?

 

         O Cavaleiro levantou vivamente a cabeça numa ofendida surpresa:

 

         - Com que autoridade? Simplesmente com a autoridade que tem sobre nós todos, como Rei de Portugal que ainda é, Deus louvado!

 

         E Gonçalo, muito simplesmente, sem fumaça ou pompa, com o mesmo sorriso de suave gracejo:

 

         - Perdão, Andrezinho. Ainda não havia Reis de Portugal, nem sequer Portugal, e já meus avós Ramires tinham solar em Treixedo! Eu aprovo os grandes dons entre os grandes Fidalgos; mas cumpre aos mais antigos começarem. El-Rei tem uma quinta ao pé de Beja, creio eu, o Roncão. Pois dize tu a El-Rei, que eu tenho imenso gosto em o fazer, a ele, Marquês do Roncão.

 

         O Barrolo embasbacara, sem compreender, com as bochechas descaídas e murchas. Da beira do canapé, Gracinha, toda corada, faiscava de gosto, por aquele lindo orgulho que tão bem condizia com o seu, mais lhe fundia a alma com a alma do irmão amado. E André Cavaleiro, furioso, mas vergando os ombros com irônica submissão, apenas murmurou: - "Bem, perfeitamente!... Cada um se entende a seu modo..."

 

         O escudeiro entrava com a bandeja do chá.

 

         E no domingo foi a Eleição.

 

         Ainda com uma desconfiança, uma reserva supersticiosa, o Fidalgo desejou atravessar esse dia muito solitariamente, quase escondido, e no sábado, enquanto todos os amigos de Vila-Clara, mesmo os de Oliveira, o consideravam estabelecido nos Cunhais, e em comunicação azafamada com o Governo Civil, montou a cavalo ao escurecer, e trotou sorrateiramente para Santa Irenéia.

 

         Mas o Barrolo (ainda abalado com "aquele despautério do Gonçalo, que era uma ofensa para o Cavaleiro! até para El-Rei!") ficara com a missão de telegrafar para a Torre as notícias sucessivas das assembléias, à maneira que elas acudissem ao Governo Civil. E, com ruidoso zelo, logo depois da missa, estabeleceu entre os Cunhais e o velho Convento de S. Domingos um serviço de criados formigando sem repouso. Gracinha, na sala de jantar, ajudada por Padre Soeiro, copiava com amor, numa letra muito redonda, os telegramas mandados pelo Cavaleiro, que ajuntava a lápis alguma nota amável - "Tudo Otimamente! - Vitória cresce. - Parabéns a V Exa.s."

 

         Pela estrada de Vila-Clara à Torre, incessantemente, o moço do Telégrafo se esbaforia sobre a perna manca. O Bento rompia pela Livraria, berrando: "outro telegrama, Sr. Doutor". Gonçalo, nervoso, com um imenso bule de chá sobre a banca, a bandeja já alastrada de cigarros meio fumados, lia o telegrama ao Bento. O Bento, com vivas pelo corredor, corria a bramar o telegrama à Rosa.

 

         E assim, quando cerca das oito horas, o Fidalgo consentiu em jantar - já conhecia o seu triunfo esplêndido. E o que o impressionava, relendo os telegramas, era o entusiasmo carinhoso daqueles influentes, povos que ele mal rogava, e que convertiam o ato da Eleição quase num ato de Amor. Toda a freguesia dos Bravais marchara para a Igreja, cerrada como uma hoste, como José Casco na frente erguendo uma enorme bandeira, entre dois tambores que estouravam. O Visconde de Rio-Manso entrara no adro da Igreja de Ramilde na sua vitória, com a neta toda vestida de branco, seguido por uma vistosa fila de char-à-bancs, onde se apinhavam eleitores sob toldos de verdura. Na Finta todos os casais se esvaziavam, as mulheres carregadas de ouro, os rapazes de flor na orelha, correndo à Eleição do Fidalgo entre o repenicar das violas, como à romaria dum Santo. E diante da taberna do Pintainho, em face à Igreja, a gente da Veleda, da Riosa, do Cercal erguera um arco de buxo, com dístico vermelho, sobre paninho: -"Viva o nosso Ramires, flor dos homens!"

 

         Depois, enquanto jantava, um moço da quinta voltou de Vila-Clara, alvoroçado, contando o delírio, as filarmônicas pelas ruas, a Assembléia toda embandeirada, e na casa da Câmara, sobre a porta, um transparente com o retrato de Gonçalo, que uma multidão aclamava.

 

         Gonçalo apressou o café. Por timidez, receoso dos vivórios, não ousava correr a Vila-Clara - a espreitar. Mas acendeu o charuto, passou à varanda, para respirar a doce noite de festa, que andava tão cheia de clarões e rumores em seu louvor. E ao abrir a porta envidraçada quase recuou, com outro espanto. A Torre iluminara! Das suas fundas frestas, através das negras reixas de ferro, saía um clarão; e muito alta, sobre as velhas ameias, refulgia uma serena coroa de lumes! Era uma surpresa, preparada, com delicioso mistério, pelo Bento, pela Rosa, pelos moços da quinta que agora, todos, no escuro, por baixo da varanda, contemplavam a sua obra, alumiando o céu sereno. Gonçalo percebeu os passos abafados, o pigarro da Rosa. Gritou alegremente da borda da varanda:

 

         - O, Bento! Ó, Rosa!... Está aí alguém?

 

         Um risinho esfuziou. A jaqueta branca do Bento surdiu da sombra.

 

         - O Sr. Dr. queria alguma coisa?

 

         - Não, homem! Queria agradecer... Foram vocês, hem? Está linda a iluminação! Mas linda. Obrigado, Bento. Obrigado, Rosa! Obrigado, rapazes! De longe deve fazer um efeito soberbo.

 

         Mas o Bento ainda se não contentava com aquelas lamparinas frouxas. A Torre, para sobressair, necessitava chamas fortes de gás. O Sr. Dr. nem imaginava a altura, depois em cima, a imensidão do eirado.

 

         Então. de repente, Gonçalo sentiu um desejo de subir a esse imenso eirado da Torre. Não entrara na Torre desde estudante - e sempre ela lhe desagradara por dentro, tão escura, de tão duro granito, com a sua nudez, silêncio e frialdade de jazigo, e logo no pavimento térreo os negros alçapões chapeados de ferro que levavam as masmorras. Mas agora as luzes nas frestas aqueciam, reviviam aquela derradeira ossada. Honra de Ordonho Mendes. E de entre as suas ameias, mais alto que da varanda, lhe parecia interessante respirar aquela rumorosa simpatia esparsa, que em torno, pelas freguesias rolava, subindo para ele, através da noite, como um incenso. Enfiou um paletot. desceu à cozinha. O Bento. o Joaquim da Horta, divertidos, agarraram grandes lanternas. E com eles atravessou o pomar, penetrou pela atarracada poterna, de funda ombreira, começou a trepar a esguia escadaria de pedra, que tanta sola de ferro polira e puíra.

 

         Já desde séculos se perdera a memória do lugar que ocupava aquela torre nas complicadas fortificações da Honra e Senhorio de Santa Irenéia. Não era decerto (segundo Padre Soeiro) a nobre torre albarrã, nem a de Alcáçova, onde se guardava o tesouro, o cartório, os sacos tão preciosos das especiarias do Oriente - e talvez, obscura e sem nome, apenas defendesse algum ângulo de muralha, para os lados em que o Castelo enfrontava com as terras semeadas e os olmedos da Ribeira. Mas, sobrevivente às outras mais altivas, compreendida nas construções do Paço formoso que se erguera dentre o sombrio Castelo Afonsino, e que dominava Santa Irenéia durante a dinastia de Avis, ligada ainda por claras arcarias dum terraço ao Palácio de gosto italiano, em que Vicente Ramires converteu o Paço manuelino depois da sua campanha de Castela; isolada no pomar, mas sobranceando o casarão que lentamente se edificara depois do incêndio do Palácio em tempo de El-Rei D. José, e a derradeira certamente onde retiniram armas e circularam os homens do Terço dos Ramires - ela ligava as idades e como que mantinha, nas suas pedras eternas, a unidade da longa linhagem. Por isso o povo lhe chamara vagamente a "Torre de D. Ramires". E Gonçalo, ainda sob a impressão dos avós e dos tempos que ressuscitara na sua Novela, admirou com um respeito novo a sua vastidão, a sua força, os seus empinados escalões, os seus muros tão espessos. que as frestas esguias na espessura se alongavam como corredores, escassamente alumiadas pelas tigelinhas de azeite, com que o Bento as despertara. Em cada um dos três sobrados parou, penetrando curiosamente. quase com uma intimidade, nas salas nuas e sonoras, de vasto lajedo, de tenebrosa abóbada, com os assentos de pedra, estranho buraco ao meio, redondo como o dum poço e ainda pelas paredes riscadas de sulcos de fumos, os anéis dos tocheiros. Depois em cima, no imenso eirado que a fieira de lamparinas, cingindo as ameias, enchia de claridade, Gonçalo, erguendo a gola do paletot na aragem mais fina, teve a dilatada sensação de dominar toda a Província, e de possuir sobre ela uma supremacia paternal, só pela soberana altura e velhice da sua torre, mais que a Província e que o Reino. Lentamente caminhou em roda das ameias, até o miradouro. a que um candeeiro de petróleo, sobre uma cadeira de palhinha posta em frente à fresta, estragava o entono feudal. No céu macio, mas levemente enevoado, raras estrelas luziam, sem brilho. Por baixo a quinta, toda a largueza dos campos, a espessura dos arvoredos se fundiam em escuridão. Mas na sombra e silêncio, por vezes além, para o lado dos Bravais, lampejavam foguetes remotos. Um clarão amarelado e fumarento, caminhando mais longe, entestando para a Finta, era decerto um rancho com archotes festivos. Na alta Igreja da Veleda tremeluzia uma iluminação vaga, rala. Outras luzes, incertas através do arvoredo, riscavam o velho arco do Mosteiro, em Santa Maria de Craquede. Da terra escura subia, por vezes, um errante som de tambores. E lumes, fachos, abafados rufos, eram dez freguesias celebrando amoravelmente o Fidalgo da Torre, que lhes recebia o amor e o preito no eirado da sua torre, envolto em silêncio e sombra.

 

         O Bento descera, com o Joaquim, para reforçar as lamparinas nas frestas dos muros, onde elas esmoreciam na espessura. E Gonçalo sozinho, acabando o charuto, recomeçou a rolda, lento, em torno às ameias, perdido num pensamento que já o agitara estranhamente, através daquele sobressaltado domingo... Era pois popular! Por todas essas aldeias, estendidas à sombra longa da Torre, o Fidalgo da Torre era pois popular! E esta certeza não o penetrava de alegria, nem de orgulho - antes o enchia agora, naquela serenidade da noite, de confusão, de arrependimento! Ah! se adivinhasse - se ele adivinhasse!... Como caminharia, com a cabeça bem levantada, com os braços bem estendidos, sozinho, em confiança risonha para todas essas simpatias que o esperavam, tão certas, tão dadas. Mas não! Sempre se julgara cercado da indiferença daquelas aldeias, onde ele, apesar do antiquíssimo nome, era o costumado moço, que volta de Coimbra e vive silenciosamente da sua renda, passeando na sua égua. A essas indiferenças tão naturais nunca ele imaginara arrancar o punhado de votos, o punhado de papelinhos que necessitava para entrar na Política, onde ele conquistaria pela destreza o que os velhos Ramires recebiam por herança - fortuna e poder. Por isso se agarrara tão avidamente à mão do Cavaleiro, à mão do Sr. Governador Civil - para que S. Exa., o bom amigo, o mostrasse, o impusesse como o homem necessário, o querido do Governo, o melhor entre os bons, a quem as freguesias deviam oferecer num domingo o punhado de votos.

 

         E na impaciência desse favor abafara a memória de amargos agravos; diante de Oliveira pasmada abraçara o homem detestado desde anos, que andava chasqueando e demolindo, por praças e jornais facilitara a ressurreição de sentimentos que para sempre deviam jazer enterrados; e envolvera o ser que mais amava, a sua pobre e fraca irmãzinha, em confusão e miséria moral... Torpezas e danos - e para quê? Para surripiar um punhado de votos que dez freguesias lhe trariam correndo, gratuitamente, efusivamente, entre vivas e foguetes, se ele acenasse e lhos pedisse...

 

         Ah! eis aí... Fora a desconfiança, essa encolhida desconfiança de si mesmo - que desde o colégio, através da vida, lhe estragara a vida. Era a mesma desgraçada desconfiança, que ainda semanas antes, diante de uma sombra, um pau erguido, uma risada numa taberna, o forçava a abalar, a fugir, arrepiado e praguejando contra a sua fraqueza. Por fim, um dia, numa volta de estrada, avança, ergue o chicote - e descobre a sua força! E agora, penetra por entre o povo, agarrado timidamente à mão poderosa, por se imaginar impopular - e descobre a sua popularidade imensa. Que vida enganada, e tanto a sujara - por não saber!

 

         O Bento não aparecia, ainda azafamado em iluminar condignamente as reixas da Torre. Gonçalo atirou a ponta do charuto, e com as mãos nas algibeiras do paletot, parou junto do miradouro, olhou vagamente para as estrelas. A névoa adelgaçara quase sumida - lumes mais vivos palpitavam no céu mais profundo. De lumes e céus descia essa sensação de infinidade, de eternidade, que penetra, como uma surpresa, nas almas desacostumadas da sua contemplação. Na alma de Gonçalo passou, muito fugidiamente, o espanto dessas eternas imensidades sob que se agita, tão vaidosa da sua agitação, a rasteira, a sombria poeira humana. Longe, algum derradeiro foguete ainda lampejava, logo apagado na escuridão serena. As luzinhas sobre a capela de Veleda, sobre o arco de Santa Maria de Craquede, esmoreciam, já ralas. Todo o remoto rumor de musicatas se perdera, na mudez mais funda dos campos adormecidos. O dia de triunfo findava, breve como os luminares e os foguetes. - E Gonçalo, parado, rente do miradouro, considerava agora o valor desse triunfo por que tanto almejara, por que tanto sabujara. Deputado! Deputado por Vila-Clara, como o Sanches Lucena. E ante esse resultado, tão miúdo, tão trivial - todo o seu esforço tão desesperado, tão sem escrúpulos, lhe parecia ainda menos imoral que risível. Deputado! Para quê? Para almoçar no Bragança, galgar de tipóia a ladeira de S. .Bento, e dentro do sujo convento escrevinhar na carteira do Estado alguma carta ao seu alfaiate, bocejar com a inanidade ambiente dos homens e das idéias, e distraidamente acompanhar, em silêncio ou balando, o rebanho do S. Fulgêncio, por ter desertado o rebanho idêntico do Braz Victorino. Sim, talvez um dia, com rasteiras intrigas e sabujices a um chefe e à senhora do chefe, e promessas e risos através de Redações, e algum Discurso esbraseadamente berrado - lograsse ser Ministro. E então? Seria ainda a tipóia pela calçada de S. Bento, com o correio atrás na pileca branca, e a farda malfeita, nas tardes de assinatura, e os recurvados sorrisos de amanuenses pelos escuros corredores da Secretaria, e a lama escorrendo sobre ele de cada gazeta de oposição... Ah! que peca, desinteressante vida, em comparação de outras cheias e soberbas vidas, que tão magnificamente palpitavam sob o tremeluzir dessas mesmas estrelas! Enquanto ele se encolhia no seu paletot, Deputado por Vila-Clara, e no triunfo dessa miséria - Pensadores completavam a explicação do Universo; Artistas realizavam obras de beleza eterna; Reformadores aperfeiçoavam a harmonia social; Santos melhoravam santamente as almas; Fisiologistas diminuíam o velho sofrer humano; Inventores alargavam a riqueza das raças; Aventureiros magníficos arrancavam mundos de sua esterilidade e mudez... Ah! esses eram os verdadeiramente homens, os que viviam deliciosas plenitudes de vida, modelando com as suas mãos incansadas formas sempre mais belas ou mais justas da humanidade. Quem fora como eles, que são os sobre-humanos! E tal ação tão suprema requeria o Gênio, o dom que, como a antiga chama, desce de Deus sobre um eleito? Não! Apenas o claro entendimento das realidades humanas - e depois o forte querer.

 

         E o Fidalgo da Torre, imóvel no eirado da Torre, entre o céu todo estrelado, e a terra toda escura, longamente revolveu pensamentos de Vida superior - até que enlevado, e como se a energia da longa raça, que pela Torre passara, refluísse ao seu coração, imaginou a sua própria encaminhada enfim para uma ação vasta e fecunda, em que soberbamente gozasse o gozo de verdadeiro viver, e em torno de si criasse vida, e acrescentasse um lustre novo ao velho lustre de seu nome, e riquezas puras o dourassem, e a sua terra inteira o bem-louvasse porque ele inteiro e num esforço pleno bem servira a sua terra...

 

         O Bento surdiu da portinha baixa do eirado, com a lanterna:

 

         - O Sr. Doutor ainda se demora?

 

         - Não. A festa acabou, Bento.

 

         Nos começos de dezembro, com o primeiro número dos Anais, apareceu a Torre de D. Ramires. E todos os jornais, mesmo os da oposição, louvaram "esse estudo magistral (como afirmou a Tarde) que, revelando um erudito e um artista, continuava, com uma arte mais moderna e colorida, a obra de Herculano e de Rebelo, a reconstituição moral e social do velho Portugal heróico". Depois das festas de Natal, que ele passou alegremente nos Cunhais, ajudando Gracinha a cozinhar bolos de bacalhau por uma receita sublime do Padre José Vicente, da Finta, os amigos de Oliveira, os rapazes do Club da Arcada ofereceram ao Deputado por Vila-Clara, na sala da Câmara, adornada de buxos e bandeiras, um banquete, a que assistia o Cavaleiro, de grã-cruz, e em que o Barão das Marges (que presidia) saudou "o prestigioso moço que, talvez em breve, nas cadeiras do Poder, levantasse do marasmo este brioso país, com a pujança, a valentia, que são próprias da sua raça nobilíssima!"

 

         No meado de janeiro, por uma agreste noite de chuva, Gonçalo partiu para Lisboa; e através do inverno, em Lisboa, andou sempre nos Carnet-Mondain e High-Life dos jornais, nas noticias de jantares, do raouts, de tiros aos pombos, de Caçadas de El-Rei, tão notado nos movimentos mais simples da sua elegância, que os Barrolos assinaram o Diário Ilustrado para saber quando ele passeava na avenida. Em Vila-Clara, na Assembléia, o João Gouveia já encolhia os ombros, rosnando: - "Desandou em janota!" - Mas nos fins de abril uma notícia de repente alvoroçou Vila-Clara, espantou na quieta Oliveira os rapazes do Club e da Arcada, perturbou tão inesperadamente Gracinha, então em Amarante com o Barrolo, que nessa noite ambos abalaram para Lisboa - e na Torre atirou a Rosa para um banco de pedra da cozinha, lavada em lágrimas, sem compreender, gemendo:

 

         - Ai o meu rico menino, o meu rico menino, que o não torno mais a ver!

 

         Gonçalo Mendes Ramires, silenciosamente, quase misteriosamente, arranjara a concessão dum vasto prazo de Macheque, na Zambézia, hipotecara a sua quinta histórica de Treixedo, e embarcava em começos de junho no paquete Portugal, com o Bento, para a África.

 

         XII

 

            Quatro anos passaram ligeiros e leves sobre a velha Torre, como vôos de ave.

 

         Numa doce tarde dos fins de setembro, Gracinha, que chegara na véspera de Oliveira acompanhada pelo bom Padre Soeiro, descansava na varanda da sala de jantar, estendida sobre o canapé de palhinha, ainda com um grande avental branco, tapando o vestido até ao pescoço, um velho avental do Bento. Todo o dia, de avental, através do casarão, ajudada pela Rosa e pela filha da Críspola, se esfalfara, arrumando e limpando, com tanto gosto e fervor no trabalho, que ela mesma sacudira o pó a todos os livros da Livraria, o seu sossegado pó de quatro anos. O Barrolo também se ocupara, dando sentenças nas obras da cavalariça, que a valente égua da briga da Grainha em breve partilharia com uma égua inglesa, de meio sangue, comprada em Londres. Também Padre Soeiro remexera, pelo Arquivo, zelosamente, com um espanejador. E até o Pereira da Riosa, o bom rendeiro, apressava desde madrugada dois moços na final limpeza da horta, agora muito cuidada, já com meloal, já com morangal, e duas novas ruas, ambas bordadas de roseiras e recobertas de latada que a parra densa já recobria.

 

         Com efeito a Torre, entre a alvoroçada alegria de todos, enfeitava a sua velhice - porque no domingo, depois dos seus quatro anos de África, Gonçalo regressava à Torre.

 

         E Gracinha, estendida no canapé com o seu velho avental branco, sorrindo pensativamente para a quinta silenciosa, para o céu todo corado sobre Valverde, recordava esses quatros anos, desde a manhã em que abraçara Gonçalo, sufocada e a tremer, no beliche do Portugal... Quatro anos! Assim passados, e nada mudara no mundo, no seu curto mundo dentre os Cunhais e a Torre, e a vida rolara, e tão sem história como rola um rio lento numa solidão; Gonçalo na África, na vaga África, mandando raras cartas, mas alegres, e com um entusiasmo de fundador de Império; ela nos Cunhais, e o seu Barrolo, num tão quieto e costumado viver, que eram quase de agitação os jantares em que reuniam os Mendonças, os Marges, o coronel do 7, outros amigos, e à noite na sala se abriam duas mesas de pano verde para o voltarete e para o boston.

 

         E neste manso correr de vida se desfizera mansamente, quase insensivelmente, a sombria tormenta do seu coração. Nem ela agora compreendia como um sentimento, que através das suas ansiedades ela justificava, quase secretamente santificava por o saber único, e o desejar eterno, assim se sumira, insensivelmente, sem dilacerações, deixara apenas um leve arrependimento, alguma esfumada saudade, também estranheza e confusão, restos de tanto que ardera, formando uma cinza fina... A sucessão das coisas rolara, como o vento às lufadas num campo, e ela rolara, levada com a inércia duma folha seca.

 

         Logo depois do derradeiro Natal passado com Gonçalo, André, que ainda os acompanhara à Missa do Galo e consoara nos Cunhais, voltou para Lisboa, para essa "Reforma", de que se lastimava... No silêncio que entre ambos então se alargou, corria já uma frialdade de abandono... E quando André recolheu a Oliveira, ao seu Governo Civil, partia ela para Amarante, onde a santa mãe do Barrolo adoecera, com uma vagarosa doença de anemia e velhice, que em maio a levou para o Senhor.

 

         Em junho fora o comovido embarque de Gonçalo para a África - e no tombadilho do paquete, entre o barulho e as bagagens, um encontro com André, que chegara de Oliveira, dias antes, e contou muito alegremente do casamento da Mariquinhas Marges. Todo esse verão, como o Barrolo decidira fazer obras consideráveis no velho palacete do largo de El-Rei, o passaram na quinta da Murtosa, que ela escolhera por causa da linda mata, dos altos muros de convento. A essa solidão atribuiu logo o Barrolo a sua melancolia, a sua magreza, aquele cansado cismar a que se abandonava, pelos bancos musgosos da mata, com um romance esquecido no regaço. Para que ela se distraísse, se fortificasse com banhos do mar, alugou em setembro, na Costa, o vistoso chalé do Comendador Barros. Ela não tomou banhos, nem aparecia na praia, à fresca hora das barracas, entre as senhoras sentadas em cadeirinhas baixas; - e só à tarde passeava pelo comprido areal, rente à vaga, acompanhada por dois enormes galgos que lhe dera Manuel Duarte. Uma manhã, ao almoço, ao abrir as Novidades, Barrolo pulou, com um berro, um espanto. Era a queda inesperada do Ministério do S. Fulgêncio! André Cavaleiro apresentava logo a sua demissão pelo telégrafo. E ainda pelas Novidades souberam na Costa que S. Exa. partira para uma 'longa e pitoresca viagem", a viagem a Constantinopla, à Ásia Menor, que ele anunciara ao jantar nos Cunhais. Ela abrira um Atlas: com o dedo lento caminhou desde Oliveira até a Síria, por sobre fronteiras e montes; já André lhe parecia desvanecido, nesses horizontes mais luminosos; fechou o Atlas, pensando simplesmente "como a gente muda!"

 

         Em novembro voltaram a Oliveira, num sábado de chuva, e ela na carruagem sentia toda a melancolia e a frialdade do céu penetrar no seu coração. Mas no domingo acordou com um lindo sol nas vidraças. Para a missa das onze na Sé, ela estreou um chapéu novo; depois, no caminho para casa da tia Arminda, levantou os olhos para o casarão do Governo Civil; agora habitava lá outro Governador Civil, o Sr. Santos Maldonado, um moço louro que tocava piano.

 

         Na outra primavera o Barrolo, agora escravizado pela paixão de obras, imaginou demolir o Mirante para construir outra estufa, mais vasta, com um repuxo entre palmeiras, que formaria "um jardim de inverno catita".

 

         Os trabalhadores começaram por esvaziar o Mirante da velha mobília que o guarnecia desde o tempo do tio Melchior; o imenso divan jazeu dois dias no jardim, encalhado contra uma sebe de buxo, e o Barrolo, impaciente, com aquele desusado traste, de molas quebradas, nem o consentiu nas arrecadações do sótão, mandou que o queimassem com outras cadeiras, partidas, numa fogueira de festa, na noite dos anos de Gracinha. E ela andou em torno da fogueira. O estofo puído flamejou, depois o mogno pesado mais lentamente, com um leve fumo, até que uma brasa ficou latejando, e a brasa escureceu em cinza.

 

         Logo nessa semana as Lousadas, mais agudas, mais escuras, invadiram uma tarde os Cunhais - e apenas espetadas no sofá, logo lhe contaram, com um riso feroz nos olhinhos furantes, do grande escândalo, o Cavaleiro! em Lisboa! sem rebuço! com a mulher do Conde de S. Romão! um fazendeiro de Cabo Verde!

 

         Nessa noite, ela escreveu a Gonçalo uma carta muito longa que começava: - "Por cá estamos todos bem, e neste ramerrame costumado..." E com efeito a vida recomeçara, no seu ramerrame, simples, contínua, e sem história, como corre um rio claro numa solidão.

 

         À porta envidraçada da varanda o filho da Críspola espreitou - o filho da Críspola, que ficara sempre na Torre, como "andarilho", mas crescera muito para fora da sua antiga jaqueta de botões amarelos, usava agora jaquetões velhos do Sr. Doutor, e já repuxava o buço:

 

         - E que está lá embaixo o Sr. Antônio Vilalobos, com o Sr. Gouveia e outro senhor, o Videirinha, e perguntam se podem falar à senhora...

 

         - O Sr. Vilalobos! Sim! que subam, que entrem para aqui, para a varanda!

 

         Ao atravessar a sala, onde dois esteireiros de Oliveira pregavam uma esteira nova, o vozeirão do Titó já ribombava, notando os "preparativos da festa..." E quando entrou na varanda a sua face mais barbuda, mais requeimada, rebrilhava com a alegria de encontrar enfim a Torre despertando daquela modorra, em que tudo dentro parecia tristemente apagado, até o lume das caçarolas:

 

         - Peço desculpa da invasão, prima Graça. Mas passamos, de volta dum passeio dos Bravais, soubemos que a prima viera com o Barrolo...

 

         - Oh! gosto imenso, primo Antônio. Eu é que peço desculpa desta figura, assim despenteada, de grande avental... Mas todo o dia em arranjos, a preparar a casa... E o Sr. Gouveia, como tem passado? Não o vejo desde a Páscoa.

 

         O Administrador, que não mudara nesses quatro anos, escuro, seco, como feito de madeira, sempre esticado na sobrecasaca preta, apenas com o bigode mais amarelado do cigarro, agradeceu à Sra. D. Graça... E passara menos mal, desde a Páscoa. A não ser a desavergonhada da garganta...

 

         - E então o nosso grande homem? quando chega? quando chega?

 

         - No domingo. Estamos todos em alvoroço... Então não se senta, Sr. Videira? Olhe, puxe aquela cadeira de vime. A varanda por ora não está arranjada.

 

         Videirinha, logo depois da Eleição, recebera de Gonçalo o lugar prometido, fácil e com vagares. para não esquecer o violão. Era amanuense na Administração do Concelho de Vila-Clara. Mas convivia ainda na intimidade do seu chefe, que o utilizava para todos os serviços, mesmo de enfermeiro, e o mandava sempre com uma autoridade seca, mesmo ceando ambos no Gago.

 

         Timidamente arrastou a cadeira de vime, que colocou, com respeito, atrás da cadeira do seu chefe. E depois de tirar as luvas pretas, que agora sempre trazia para realçar a sua posição, lembrou que o comboio chegava ao apeadeiro de Craquede às dez e quarenta, não trazendo atraso. Mas talvez o Sr. Doutor apeasse em Corinde, por causa das bagagens...

 

         - Duvido - murmurou Gracinha. - Em todo ocaso o José está com tenção de partir de madrugada, para o encontrar na bifurcação, em Lamelo.

 

         - Nós, não! - acudiu o Titó, que se sentara familiarmente no rebordo da varanda. - Cá o nosso rancho vai simplesmente a Craquede. Já é terra da família, e sítio mais sossegado para o vivório... Mas então esse homem não se demorou em Lisboa, prima Graça?

 

         - Desde domingo, primo Antônio. Checou no domingo, de Paris, pelo Sud-Express. E teve uma chegada brilhante... Oh! muito brilhante! Ontem recebi eu uma carta da Maria Mendonça, uma grande carta em que conta...

 

         - O quê? A prima Maria Mendonça está em Lisboa?

 

         - Sim, desde os fins de agosto, numa visita a D. Ana Lucena...

 

         Vivamente, João Gouveia puxou a cadeira, numa curiosidade que decerto o remoera:

 

         - É verdade, Sra. D. Graça! Então parece que a D. Ana Lucena comprou uma casa em Lisboa, anda em arranjos de mobília?... V Exa. ouviu, Sra. D. Graça?

 

         Não, Gracinha não sabia. Mas era natural, agora que tanto se demorava em Lisboa, pouco se aproveitava da Feitosa, tão linda quinta...

 

         - Então casa! - exclamou o Gouveia, com imensa convicção. - Se anda em arranjos de mobília, então casa. É natural, quer posição. Depois, já lá vão quatro anos de viuvez, e...

 

         Gracinha sorriu. Mas o Titó, que coçava lentamente a barba, voltou à carta da prima Maria Mendonça, contando a chegada.

 

         - Sim! - acudiu Gracinha - conta, esteve na Estação, no Rossio. Parece que o Gonçalo ótimo, mais forte... Olhe, primo Antônio, leia a carta. Leia alto! Não tem segredos. É toda sobre o Gonçalo...

 

         Tirara do bolso um pesado envelope, com sinete de armas no lacre. Mas a prima Maria escrevia sempre depressa, numa letra atabalhoada, com as linhas cruzadas. Talvez o primo Antônio não compreendesse... - E com efeito, diante das quatro folhas de papel eriçadas de negras linhas, parecendo uma sebe espinhosa, o Titó recuou, aterrado. Mas o João Gouveia imediatamente se ofereceu, com a sua perícia em decifrar ofícios de Regedores... Não havendo segredos.

 

         - Não, não há segredos - afiançou Gracinha, rindo. - É unicamente sobre o Gonçalo, como num jornal.

 

         O Administrador folheou a imensa carta, passou os dedos sobre o bigode, com certa solenidade:

 

         'Minha querida Graça... A costureira do Silva diz que o vestido..."

 

         - Não! - acudiu Gracinha. - É na outra página, no alto. Volte a página.

 

         Mas o Administrador gracejou, ruidosamente. Oh! está claro, carta de senhora, logo os trapos... E a Sra. D. Graça a assegurar que era toda sobre Gonçalo. Pois já veriam se pelo meio se não falava ainda em vestidos... Ah! estas senhoras, com os trapos!... - Depois recomeçou, na outra página, com lentidão e gravidade:

 

         "... Deves agora estar ansiosa por saber da grande chegada do primo Gonçalo. Foi realmente brilhante, e parecia uma recepção de pessoa real. Éramos mais de trinta amigos. Está claro, apareceu toda a roda da nossa parentela; e se rebentasse de repente nessa manhã uma revolução, os Republicanos apanhavam ali junta, na estação do Rossio, toda a flor da nobreza de Portugal, da velha, da boa. De senhoras, era a prima Chelas, a tia Louredo, as duas Esposendes (com o tio Esposende, que, apesar do reumatismo e da vindima, veio expressamente da quinta de Torres), e eu. Homens, todos. E como estava o Conde de Arega, que é secretário de El-Rei, e o primo Olhalvo, que é o seu Mordomo-Mor, e o Ministro da Marinha e o Ministro das Obras Públicas, ambos condiscípulos e íntimos de Gonçalo, as pessoas na estação deviam imaginar que chegava El-Rei. O Sud-Express trouxe quarenta minutos de demora. De modo que parecia um salão, com toda aquela gente de sociedade, muito alegre, e o primo Arega, sempre tão amável e engraçado, e fazendo já convites para um jantar (que depois deu) ao primo Gonçalo. Lá fui a esse jantar com o meu vestido verde, novo, que ficou bem...

 

         Gouveia gritou triunfando:

 

         - Hem? Que disse eu?! cá está vestido. Vestido verde!

 

         - Lê para diante, homem! - bramou o Titó.

 

         E o Administrador, realmente interessado, recomeçou, com entono:

 

         "...com o meu vestido verde novo, exceto a saia, um pouco pesadota. Creio que fui eu a primeira que avistou o primo Gonçalo, na plataforma do Sud-Express. Não imaginas como vem... ótimo! Até mais bonito, e sobretudo mais homem. A África nem de leve lhe tostou a pele. Sempre a mesma brancura. E duma elegância, dum apuro! Prova de como se adianta a civilização da África! dizia o primo Arega, este é estilo novo de tangas em Macheque!... Como imaginas, muito abraço, muita beijoca. A tia Louredo choramingou. Ah, já esquecia! Estava também o Visconde de Rio-Manso, com a filha, a Rosinha. Muita linda ela, com um vestido do Redfern, fez sensação. Todos me perguntavam quem era, e o Conde de Arega, está claro, logo com apetite de ser apresentado. O Rio-Manso também choramingou ao abraçar o primo Gonçalo. E ali viemos todos, em nobre séquito, pela estação fora, entre o pasmo dos povos. Mas imediatamente uma cena. De repente, no meio de toda aquela nata de brasões, o primo Gonçalo rompe e cai nos braços do homenzinho de bonnet agaloado que recebia à porta os bilhetes. Sempre o mesmo Gonçalo! Parece que o conheceu ao chegar a Lourenço Marques, onde o homem tratava de se estabelecer como fotógrafo. Mas já esquecia o melhor - o Bento! Não imaginas o Bento... Magnífico! Deixou crescer um bocado de suíça. É um modelo, vestido em Londres, de grande casaco de viagem de pano claro, até aos pés, luvas amareladas, gravidade imensa. Gostou de me ver na estação - perguntou logo, com o olho miúdo, pela Sra. D. Graça, e pela Rosa. A noite, o José e eu jantamos em família, com o primo Gonçalo, no Bragança, para conversar da Torre e dos Cunhais. Ele contou muitas coisas interessantes da África. Traz notas para um livro, e parece que o prazo prospera. Nestes poucos anos plantou dois mil coqueiros. Tem também muito cacau, muita borracha. Galinhas são aos milhares. É verdade que uma galinha gorda em Macheque vale um pataco. Que inveja! Aqui em Lisboa custa seis tostões, só com ossos - porque tendo também alguma carne no peito, salta para cá dez tostões, e agradece! No prazo já se construiu uma grande casa, próximo do rio, com vinte janelas e pintada de azul. E o primo Gonçalo declara que já não vende o prazo nem por oitenta contos. Para felicidade completa até achou um excelente Administrador. Eu todavia duvido que ele volte para a África. Tenho agora cá a minha linda idéia sobre o futuro do primo Gonçalo. Talvez até rias. E não adivinhas... com efeito, eu mesma só nessa noite em que jantamos no Bragança, recebi de repente a inspiração. O Rio-Manso está também no Bragança. Quando descíamos para o jantar, para um gabinete, encontramos no corredor o velho com a pequena. O homem tornou logo a abraçar Gonçalo, com uma ternura de pai. E a Rosinha tão vermelha se fez, que até Gonçalo, apesar de excitado e distraído, notou e corou de leve. Parece que já há entre eles um conhecimento antigo, por causa dum cesto de rosas, e que, desde anos, o Destino os anda sorrateiramente chegando. Ela é realmente uma beleza. E tão simpática, tão bem-educada!... Diferença de idade, apenas onze anos; e o dote tremendo. Falam em quinhentos contos. Ha: apenas a questão de sangue, e o dela, coitadinha... Enfim, como se diz em heráldica - "o Rei faz a pastora Rainha". E os Ramires não só vêm dos Reis, mas os Reis vêm dos Ramires. - E agora passando a assunto menos interessante..."

 

         Discretamente João Gouveia dobrou a carta, que entregou a Gracinha, louvando a Sra. D. Maria Mendonça como um repórter precioso. Depois, com um cumprimento:

 

         - E; minha senhora, se as previsões dela se realizam...

 

         Mas não! Gracinha não acreditava! Ora! imaginações da Maria Mendonça.

 

         - O primo Antônio bem a conhece, sabe como ela é casamenteira...

 

         - Pois se até a mim me quis casar - ribombou o Titó saltando do rebordo da varanda. - Imagine a prima... Até a mim! Com a viúva Pinho, da loja de panos.

 

         - Credo!

 

         Mas o Gouveia insistia, com superioridade, um sentimento verdadeiro da vida positiva:

 

         - Olhe, Sra. D. Graça, acredite V. Exa., sempre era melhor arranjo para o Gonçalo que a África... Eu não acredito nesses prazos... Nem na África. Tenho horror à África. Só serve para nos dar desgostos. Boa para vender, minha senhora! A África é como essas quintarolas, meio a monte, que a gente herda duma tia velha, numa terra muito bruta, muito distante, onde não se conhece ninguém, onde não se encontra sequer um estanco; só habitada por cabreiros, e com sezões todo o ano. Boa para vender.

 

         Gracinha enrolava lentamente nos dedos a fita do avental:

 

         - O quê! vender o que tanto custou a ganhar, com tantos trabalhos no mar, tanta perda de vida e fazenda?!

 

         O Administrador protestou logo, com calor, já enristado para a controvérsia:

 

         - Quais trabalhos, minha senhora? Era desembarcar ali na areia, plantar umas cruzes de pau, atirar uns safanões aos pretos... Essas glórias de África são balelas. Está claro, V. Exa. fala como fidalga, neta de Fidalgos. Mas eu como economista. E digo mais...

 

         O seu dedo agudo ameaçava argumentos agudos.

 

         Titó acudiu, salvou Gracinha:

 

         - Oh, Gouveia, nós estamos a tirar o tempo à prima Graça, que anda nos seus arranjos. Essas questões da África são para depois, com o Gonçalo, à sobremesa... E então, minha querida prima, até domingo, em Craquede. Lá comparece o rancho todo. E quem atira os foguetes sou eu!

 

         Mas Gouveia, cofiando o coco com a manga, ainda esperava converter a Sra. D. Graça às idéias sãs, sobre Política Colonial.

 

         - Era vender, minha senhora, era vender! - Ela sorria, já consentia - tomando a mão de Videirinha, que hesitava, com os dedos espetados:

 

         - E então, Sr. Videira, tem agora algumas quadras novas para o Fado?

 

         Corando, Videirinha balbuciou que "arranjara uma coisita, também num fado, para a volta do Sr. Doutor". Gracinha prometeu decorar, para cantar ao piano.

 

         - Muito agradecido a V. Exa.... Criado de V. Exa....

 

         - Então até domingo, primo Antônio... Está uma tarde linda.

 

         - Até domingo, em Craquede, prima.

 

         Mas à porta envidraçada, João Gouveia parou mais teso, bateu na testa:

 

         - Já me esquecia, desculpe V. Exa.! Recebi uma carta do André Cavaleiro, da Figueira da Foz. Manda muitas saudades ao Barrolo. E quer saber se o Barrolo lhe poderia ceder daquele vinho verde de Vidainhos. E também para um africanista, para o Conde de S. Romão... Parece que a Sra. Condessa se péla por vinho verde!

 

         E os três amigos, em fila, atravessaram a sala de jantar, onde o vozeirão do Titó ainda ribombou, louvando a esteira nova de cores. No corredor, Videirinha espreitou para a Livraria, notou o molho de penas de pato espetado no velho tinteiro de latão, que esperava, rebrilhando solitariamente sobre a mesa nua sem papéis nem livros. Depois a Rosa apareceu à porta do quarto de Gonçalo, ajoujada de roupa, com um riso em cada ruga da sua face redonda e cor de tijolo, que o farto lenço de cambraia, muito branco, circundava como um nimbo. O Titó afagou carinhosamente o ombro da boa cozinheira:

 

         - Então, tia Rosa, agora recomeçam essas grandes petisqueiras, hem?

 

         - Louvado seja Deus, Sr. D. Antônio! Que imaginei que não tornava a ver o meu rico senhor. Também já tinha decidido... Se me enterrassem o corpo aqui em Santa Irenéia, antes de eu ver o menino, a alma com certeza ia à África para lhe fazer uma visita.

 

         Os seus miúdos olhos piscaram, lacrimejando de gosto - e seguiu pelo corredor, tesa e decidida, com a sua trouxa que rescendia a maçã camoesa. O Gouveia murmurara com uma careta: - "Safa!" E os três amigos desceram ao pátio onde, por curiosidade do Titó, visitaram as obras da cavalariça.

 

         - Veja você! - exclamou ele para o Gouveia, que acendia o charuto. - Você a negar!... Mobílias, obras, égua inglesa... Tudo já dinheiro de África.

 

         O Administrador encolheu os ombros:

 

         - Veremos depois como ele traz o fígado...

 

         Diante do portão o Titó ainda parou a colher, na roseira costumada, uma rosinha para florir o jaquetão de veludilho. E juntamente entrava o Padre Soeiro, recolhendo duma volta pelos Bravais, com o seu grande guarda-sol de paninho e o seu breviário. Todos acolheram com carinho o santo e douto velho, tão raro agora na Torre.

 

         - E então, no domingo, cá temos o nosso homem, Padre Soeiro!

 

         O capelão achatou sobre o peito a mão gorda, com reverência, com gratidão...

 

         - Deus ainda me quis conceder, na minha velhice, mais esse grande favor... Pois mal o esperava. Terras tão ásperas, e ele tão delicado...

 

         E para conversar de Gonçalo, da espera em Craquede, acompanhou aqueles senhores até a ponte da Portela. João Gouveia manquejava, aperreado por umas infames botas novas que nessa manhã estreara. E descansaram um momento no belo banco de pedra que o pai de Gonçalo mandara colocar, quando Governador Civil de Oliveira. Era esse o doce sítio donde se avista Vila-Clara, tão asseada, sempre tão branca, àquela hora toda rosada, desde o vasto convento de Santa Teresa até o muro novo do cemitério no alto, com os seus finos ciprestes.

 

         Para além dos outeiros de Valverde, longe, sobre a Costa, o sol descia, vermelho como um metal candente que arrefece, entre nuvens vermelhas, acendendo ainda, em ouro coruscante, as janelas da Vila.

 

         Ao fundo do vale, uma claridade nimbava as altas ruínas de Santa Maria de Craquede, entre o seu denso arvoredo. Sob o arco, o rio cheio corria sem um rumor, já dormente na sombra dos choupos finos, onde ainda pássaros cantavam. E na volta da estrada, por cima dos álamos que escondiam o casarão, a velha Torre, mais velha que a Vila e que as ruínas do Mosteiro, e que todos os casais espalhados, erguia o seu esguio miradoiro, envolto no vôo escuro dos morcegos, espreitando silenciosamente a planície e o sol sobre o mar, como em cada tarde desses mil anos, desde o Conde Ordonho Mendes.

 

         Um pequeno com uma alta aguilhada passou, recolhendo duas vacas lentas. Do lado da Vila, o Padre José Vicente da Finta trotou na sua égua branca, saudou o Sr. Administrador, o amigo Soeiro, abençoando também a chegada do Fidalgo para quem já preparara uma bela cesta da sua uva moscatel. Três caçadores, com uma matilha de coelheiros, atravessaram a estrada, descendo pelo portelo à quelha que contorna o casal do Miranda.

 

         Um silêncio ainda claro, de imenso repouso, tão doce como se descesse do céu, cobria a largueza povoada dos campos, onde não se movia uma folha, na macia transparência do ar de setembro. Os fumos das lareiras acesas já se escapavam, lentos e leves, dentre a telha rala. Na loja do João ferreiro, adiante da Portela, o clarão da forja avivou, mais vermelho. Um bum-bum de tambor bateu festivamente para o lado dos Bravais, cresceu apressado, marchando - nalgum cabeço, depois lentamente se afastou, esmoreceu, logo sumido, em arvoredos ou no vale mais fundo.

 

         João Gouveia, que se recostara no canto do largo assento de pedra, como seu coco sobre os joelhos, acenou para o lado dos Bravais:

 

         - Estou a lembrar aquela passagem do romance do Gonçalo, quando os Ramires se preparam para socorrer as Infantas, andam a reunir a mesnada. É assim, a estas horas da tarde, com tambores; e por sítios... "Na frescura do vale..." Não! "Pelo vale de Craquede..." Também não! Esperem vocês, que eu tenho boa memória... Ah! "E por todo o fresco vale até Santa Maria de Craquede, os atambores mouriscos abafados no arvoredo, tarará! tarará! ou mais vivos nos cerros, ratatá! ratatá! convocavam a mesnada dos Ramires, na doçura da tarde..." É lindo!

 

         Por sobre as costas do Titó que, debruçado, riscava pensativamente com o bengalão a poeira da estrada, Videirinha adiantou para o seu chefe a face estendida, com um sorriso de finura:

 

         - Oh Sr. Administrador, olhe que talvez seja ainda mais bonito, quando os Ramires largam a perseguir o Bastardo! Cá para mim, tem mais poesia. Quando o velho faz aquela jura com a espada e depois lá na Torre, muito devagar, começa a tocar a finados... É de apetite!

 

         À borda do assento, encolhido contra o Titó, para que o Sr. Administrador se alastrasse confortavelmente, Padre Soeiro, com as mãos no cabo do seu guarda-sol, concordou:

 

         - Com certeza! são lances interessantes... Com certeza! Naquela Novela há imaginação rica, muito rica; e há saber, há verdade.

 

         O Titó, que depois de Simão de Nântua, em pequeno, não abrira mais as folhas dum livro, e não lera a Torre de D. Ramires, murmurou, com um risco mais largo na poeira:

 

         - Extraordinário, aquele Gonçalo!

 

         O Videirinha não findara o seu enlevado sorriso:

 

         - Tem muito talento... Ah! o Sr. Doutor tem muito talento.

 

         - Tem muita raça! - exclamou o Titó, levantando a cabeça. - E é o que o salva dos defeitos... Eu sou amigo de Gonçalo, e dos firmes. Mas não o escondo, nem a ele... Sobretudo a ele. Muito leviano, muito incoerente... Mas tem a raça que o salva.

 

         - E a bondade, Sr. Antônio Vilalobos! - atalhou docemente Padre Soeiro. - A bondade, sobretudo como a do Sr. Gonçalo, também salva... Olhe, às vezes há um homem muito sério, muito puro, muito austero, um Catão que nunca cumpriu senão o dever e a lei... E todavia ninguém gosta dele, nem o procura. Por quê? Porque nunca deu, nunca perdoou, nunca acarinhou, nunca serviu. E ao lado outro leviano, descuidado, que tem defeitos, que tem culpas, que esqueceu mesmo o dever, que ofendeu mesmo a lei... Mas quê? É amorável, generoso, dedicado, serviçal, sempre com uma palavra doce, sempre com um rasgo carinhoso... E por isso todos o amam, e não sei mesmo, Deus me perdoe, se Deus também o não prefere...

 

         A curta mão que acenara para o céu recaiu sobre o cabo de osso do guarda-sol. Depois, e corado com a temeridade de pensamento tão espiritual, acudiu cautelosamente:

 

         - Que esta não é propriamente doutrina da Igreja!... Mas anda nas almas; anda já em muitas almas.

 

         Então João Gouveia abandonou o recosto do banco de pedra e teso na estrada, com o coco à banda, reabotoando a sobrecasaca, como sempre que estabelecia um resumo:

 

         - Pois eu tenho estudado muito o nosso amigo Gonçalo Mendes. E sabem vocês, sabe o Sr. Padre Soeiro quem ele me lembra?

 

         - Quem?

 

         - Talvez se riam. Mas eu sustento a semelhança. Aquele todo de Gonçalo, a franqueza, a doçura, a bondade, a imensa bondade, que notou o Sr. Padre Soeiro... Os fogachos e entusiasmos, que acabam logo em fumo, e juntamente muita persistência, muito aferro quando se fila à sua idéia... A generosidade, o desleixo, a constante trapalhada nos negócios, e sentimentos de muita honra, uns escrúpulos, quase pueris, não é verdade?... A imaginação que o leva sempre a exagerar até à mentira, e ao mesmo tempo um espírito prático, sempre atento à realidade útil. A viveza, a facilidade em compreender, em apanhar... A esperança constante nalgum milagre, no velho milagre de Ourique, que sanará todas as dificuldades... A vaidade, o gosto de se arrebicar, de luzir, e uma simplicidade tão grande, que dá na rua o braço a um mendigo... Um fundo de melancolia, apesar de tão palrador, tão sociável. A desconfiança terrível de si mesmo, que o acovarda, o encolhe, até que um dia se decide, e aparece um herói, que tudo arrasa... Até aquela antigüidade de raça, aqui pegada à sua velha Torre, há mil anos... Até agora aquele arranque para a África... Assim todo completo, com o bem, com o mal, sabem vocês quem ele me lembra?

 

         - Quem?...

 

         - Portugal.

 

         Os três amigos retomaram o caminho de Vila-Clara. No céu branco uma estrelinha tremeluzia sobre Santa Maria de Craquede. E Padre Soeiro, com o seu guarda-sol sob o braço, recolheu à Torre vagarosamente, no silêncio e doçura da tarde, rezando as suas Ave-Marias, e pedindo a paz de Deus para Gonçalo, para todos os homens, para campos e casais adormecidos, e para a terra formosa de Portugal, tão cheia de graça amorável, que sempre bendita fosse entre as terras.

Godofredo não disse nada, o outro petiscou lume, acendeu pausadamente o cigarro.

 

         E a você, na sua posição, na praça, não lhe faz senão mal...

 

Godofredo voltou-se impaciente.

 

         E de quem é a culpa?

 

Pois bem... Mas enfim, o melhor seria evitar o falatório. Pelo menos naqueles primeiros tempos...

 

Margarida entrou com o café. Godofredo sentara-se. E remexendo o açúcar, um diante do outro, o genro e o sogro, estiveram um momento calados. Neto provou o café, deitou-lhe ainda mais açúcar. Depois deu duas fumaças. E voltou à sua idéia:

 

         Nem para você, nem para mim, é bom que se ponham pôr aí a falar.

 

Então aquelas lentidões, aquelas pausas irritaram Godofredo.

 

         Mas que diabo! Que quer que eu lhe faça?

 

Mas Neto conservava agora o seu ar calmo e refletido. E com uma voz tranqüila falou dos seus sentimentos. Ele sempre se tivera pôr bom pai; e, se não fossem as circunstâncias em que estava, não teria aceitado mesada para sua filha... Não teria exigido nada. Levava-a para casa, lá viveriam todos, e acabou-se... E tudo o que fosse necessário para fazer cessar o escândalo fá-lo-ia à sua conta.

 

Godofredo começava a perceber. O Neto tinha uma outra idéia para apanhar dinheiro : e ele quis logo as coisas claras.

 

         Vamos lá a saber, sem mais circunlóquios, o que o senhor pensa.

 

Mas o Neto continuou com circunlóquios. O melhor meio de evitar o escândalo. O melhor meio de evitar o escândalo era sair de Lisboa. E a estação favorecia-os, era o tempo de ir para banhos, ninguém se admiraria que ele fosse pôr exemplo para a Ericeira levando sua filha casada. Todo o mundo suporia que Alves não podia acompanhá-la, nem deixar os seus negócios... Mas ninguém sabia se ele ia ou não ver sua mulher todas as semanas. A idéia era famosa, mas...

 

Godofredo interrompeu-o:

 

         Mas quer que eu lhe dê o dinheiro para isso...

 

         A não ser que eu o vá roubar – ajuntou o outro muito francamente.

 

Godofredo refletiu. Havia ali uma maneira hábil de ir passar o verão para a praia, à custa dele; mas ao mesmo tempo a idéia era prática, matava o falatório. Aceitou. E num instante regularam os detalhes. Para o aluguel da casa na Ereceira, jornadas, transporte de alguma mobília, o Godofredo dava trinta libras; e nos meses de agosto, setembro e outubro, a mesada à filha, para despesas de praia, seria elevada a cinqüenta mil réis. E apenas dissera isto, ergue-se, querendo pôr todos os modos cessar aquela entrevista.

 

         E não falemos mais nisto, que tenho a cabeça em água.

 

Estava com efeito pálido como um morto, com um começo de enxaqueca, um desejo de se deitar, de adormecer pôr muito tempo.

 

Mas Neto, de pé, ainda queria dizer uma última palavra. De ora em diante, ele era o responsável pôr  sua filha. Confiava em Deus, tinha a certeza que mais tarde, passado aquele primeiro desgosto, haveria mútua indulgência, e eles se viriam a juntar...

 

Godofredo negou, com um movimento de cabeça, um sorriso doloroso. Não, nunca de juntaria com ela.

 

O futuro pertence a Deus – disse Neto. – Agora  concordo que é melhor que estejam separados pôr algum tempo. E era a isto que eu queria chegar: enquanto ela estiver em minha casa, é como se estivesse num convento... Respondo pôr ela.

 

Godofredo fez com os ombros um movimento vago. Tudo aquilo lhe parecia palavreado. O que queria agora era estar só. Tinha tocado a campainha, Margarida preparava-se para abrir a porta, alumiar  ao sr. Neto. Ele tomou o seu chapéu, bebeu, já de pé, o último gole de café, e depois de apertar a mão do genro, saiu, recomendando baixo à criada que tivesse prontas as malas da senhora...

 

E manda dizer que não lhe esqueça aquele açucareiro de prata que lhe deu o padrinho nos anos dela... O açucareiro é dela.

 

E desceu as escadas, regozijando-se desta boa idéia. A filha não lhe dissera nada do açucareiro. Mas enfim era dela, uma bonita peça de prata, e era bom que lhe recolhesse à casa, também.

 

Fora, a noite estava abafada, e Neto dirigiu-se à casa devagar, levando o chapéu na mão, calculando as despesas da Ericiera, contente consigo. Os banhos iam-lhe fazer bem. Com cinqüenta mil réis pôr mês, da Ludovina, podia-se estar com conforto: e, como a Ludovina não devia aparecer, nem havia toilletes  a fazer, ainda se metia dinheiro no bolso.

 

Quando depois de subir, aos poucos, os seus cento e cinqüenta degraus, bateu à campainha da porta, foi a Teresa, a filha solteira, que veio abrir, a correr, com os olhos brilhantes, toda excitada. Ninguém lhe disfarçara a verdade. Sabia já que a Ludovina tinha sido apanhada com um homem, que havia um grande desgosto, que o pai fora para Ter uma explicação com o Godofredo.

 

         Então – perguntou ela, sofregamente.

 

         Lá dentro, lá dentro falaremos.

 

Atravessaram a cozinha, que estava às escuras com uma claridade de brasa no fogão, onde fervia a chaleira, e entraram na sala de jantar, uma espécie de cubículo nas traseiras. Sentada à mesa redonda, coberta de oleado, a criada, a sra. Joana, uma raparigota fresca, com dois brincos ricos de senhora, e vestido de merino azul, lia o Diário das Novidades  à luz dum candeeiro de petróleo, com abat-jour ; e junto ao aparador na sombra, estendida numa cadeira de vime, calada, vestida, estava Ludovina.

 

Quando o pai apareceu, ela ergueu-se, com os olhos ainda vermelhos, toda vestida de preto.

 

Neto sentara-se, limpando com o lenço de seda o suor do pescoço. Os olhos das três mulheres devoraram-no. E como ele não se apressava, gozando a ansiedade da família, foi a sra. Joana que gritou:

 

         Vamos lá, então, fale!

 

Ele enrolou devagar o lenço e respondeu, no silêncio profundo da sala:

 

         O Godofredo dá trinta mil réis pôr mês.

 

Houve uma vaga respiração de alívio, correu um frêmito de satisfação. Teresa olhava a irmã, pasmada daqueles trinta mil réis que lhe vinham a assim para o bolso, pôr Ter sido apanhada com um homem. A sra. Joana confessou que era de cavalheiro. Mas a Ludovina não via nada de extraordinário: era o que faltava é que a pusesse fora da porta, sem cinco réis.

 

Então o pai voltou-se para ela com a testa enrugada.

 

         E no fim dizes que não tinhas escrito nada, e ele diz que te apanhou cartas indecentes.

 

         É mentira – disse ela simplesmente -, as cartas não diziam nada... Eram uma brincadeira.

 

Houve um silêncio, o Neto, com os olhos na borda da mesa, acalmava dignamente as repas da calva. E as três mulheres continuavam a olhá-lo esperando outros detalhes, toda a história da entrevista.

 

         E as malas da Lulu, ó papá – perguntou a Teresinha, que vivia desde essa tarde com o desejo de ver chegar as malas, de as ver desfazer, apanhar algum presente.

 

Mas o papá, todo noutra idéia, continuou, sem responder:

 

E ficou combinado que para evitar falatório vamos passar o verão à Ericeira.

 

Então foi uma alegria. Teresinha bateu as palmas. Joana ria, de satisfação, ela que tanto precisava de banhos. Só Ludovina ficava indiferente com uma sombra de tristeza na face, pensando no belo plano de que Godofredo andava ultimamente falando, os dois meses de agosto e setembro passados em Sintra. E foi sentar-se de novo, enquanto Joana e Teresinha torturavam o papá de perguntas, já com planos, ambas com o entusiasmo daquela estação de banhos... E eram já mil planos. Teresa já palrava desabaladamente. Joana lembrava coisas que seria necessário levar, os colchões, a louça de mesa, e o piano, para dar mais alegria. O melhor seria irem todos à Ericeira, para alugar a casa... Então Ludovina saiu do seu silêncio.

 

E é necessário uma casa em que se caiba... Que para dormir num cubículo como este de cá, não tem jeito.

 

Diante desta exigência, o pai franziu a testa. E não se conteve e disse logo:

 

Hás-de dormir onde puderes... Se querias os cômodos da casa de teu marido, portasses-te bem, ficasses lá.

 

Houve um silêncio na sala. Ninguém jamais ousava replicar quando Neto erguia a voz. Então, naquele silêncio de respeito e de susto, que se fizera em torno da sua voz irritada, ele aproximou-se da mesa, tirou da algibeira um lápis, encavalou a luneta no nariz, e, sob o candeeiro, começou a fazer à margem do jornal os cálculos das despesas da Ericiera. Toda estendida pela mesa, Teresinha via alinhar os números – tanto para casa, tanto da carruagem que os levasse, como uma enfiada de prazeres que brilhavam uns entre os outros. Pôr trás, de pé, Joana dava as suas idéias. Dentro na cozinha a chaleira do chá fervia. Uma tranqüilidade honesta envolvia a casa; e na sombra Ludovina, calada, como esmagada diante da existência que agora a esperava, os incômodos, a má comida, o gênio do pai, a autoridade da criada na casa, tudo o que a esperava e tudo o que perdera, e amaldiçoava a sua infelicidade de ter caído assim nos braços dum sujeito que ela não amava, de quem não recebia prazer, levada àquilo sem saber pôr quê, pôr tolice, pôr não Ter que fazer, nem ela sabia pôr que.

 

V

 

 

 

NA MANHÃ SEGUINTE um raio de sol, entrando pela janela, despertou bruscamente Godofredo. Ergueu-se de repente sobre o cotovelo, e, batendo as pálpebras, ficou espantado de se ver num sofá, vestido, com botas. Então bruscamente a idéia toda da sua desgraça caiu-lhe sobre o coração pesadamente. E um véu de crepe pareceu envolver tudo em torno dele. Na véspera, depois que o Neto partira, estendera-se ali, morto de fadiga, e adormecera logo, dum sono fundo e pesado. Então sentou-se no sofá. Havia um grave silêncio na casa e na rua: eram apenas seis horas. Em redor o quarto conservava a desordem da véspera, com a mala ao centro, o chambre de Ludovina atirado aos pés da cama. Olhou muito tempo aquele chambre, o grande leito intacto, onde ninguém se deitara, com as duas travesseirinhas ao lado uma da outra. Depois, como na véspera, percorreu a casa: na sala de jantar, a mesa ainda tinha a toalha da véspera e em cima uma vela esquecida derretera-se e extinguira-se dentro dum castiçal. Depois diante da porta da sala de visitas tomou-o uma covardia, não se atreveu a mover o reposteiro. E voltou para o quarto, tornou a sentar-se no sofá, as mãos ao acaso, o olhar vago, sem saber o que havia de fazer àquela hora matutina, em que a cidade ainda dormia. Àquela hora Ludovina decerto dormia também. E recordava-se ds manhãs em que ele acordava cedo, se erguia de manso, abria uma fresta da janela, enquanto ela dormia, com os seus cabelos numa rede, uma renda do chambre em volta do pescoço, e as longas pestanas negras fazendo-lhe uma sombra na face... Agora o leito, ainda feito, àquela luz clara da manhã, dava-lhe uma sensação de frialdade, de desconforto... Uma tristeza invadiu-o, imensa, sem fim, que o dissolvia, lhe dava vontade de deitar a cabeça para um canto do sofá, ficar ali a morrer... E a mesma idéia da véspera voltava, a idéia da morte, entrando-lhe no espírito como a lenta suavidade duma carícia.

 

Mas daí a horas tudo estaria decidido, talvez ele fosse como um homem morto. Era às onze horas que devia encontrar o outro. O coração batia-lhe à idéia que o ia ver, outra vez, diante de si; e parecia-lhe, agora, impossível de o imaginar numa outra atitude, que não fosse como o vira na véspera, com o braço em torno da cinta dela. Mas agora a sua idéia da véspera, o tirar à sorte o suicídio, que parecera tão natural, espantava-o um pouco. Parecia-lhe estranho que fosse ele, ele, Alves, que, ali, naquela rua de são Bento que o sol da manhã dourava, tivesse tido semelhante idéia, uma idéia trágica, e própria dum coração violento. E tomava-o uma inquietação. Que diria o outro a semelhante proposta? Se recusasse? E outras dificuldades de detalhe surgiram . Como tirariam à sorte? Com papéis brancos? E subitamente veio-lhe o receio que, diante duma proposta tão exaltada, o outro se risse... Nesse caso esbofeteava-o. Mas não, não poderia recusar, era um homem de honra! Enfim daí a horas o saberia. E não queria pensar mais nisso. Aquela idéia ocupava-o, quase o impedia de sofrer; pôr outro lado, dava-lhe uma espécie de consideração pôr si mesmo, encobria o ridículo – e não queria pensar em nada que diminuísse a importância desse plano.

 

No entanto sentiu passos na cozinha, as criadas tinham-se erguido. Na rua, um rumor ia subindo, vozes de pregoada, as carroças, a sussurração da cidade que acorda. E então pouco a pouco ele foi entrando na rotina diária, pôs os botões na camisa lavada, afiou a sua navalha de barba. Mas aquela grande mala no quarto incomodava-o.. De repente, lembrou-se que devia fazer o seu testamento. E imóvel diante do espelho, com metade da cara ensaboada, ficou revolvendo esta idéia: e um vago espanto, uma estranheza tomava-o de estar ali pensando no testamento. Porque agora todas as idéias que na febre da véspera lhe tinham parecido naturais e fáceis tomavam agora, naquela luz clara da manhã, entre a rotina da sua toillete , uma frieza pouco natural, falsa, que repugnava ao lado positivo do seu caráter,

 

Às oito horas a campainha retiniu. Ele foi escutar. Depois a criada andou para dentro, para fora, ele perguntou quem era? A criada do sr. Neto. E não ousou perguntar mais nada, nem o que ela queria.

 

Depois foi o almoço. Ele devorou. Estranhou mesmo de não ver o fiambre na mesa – e a criada, depois de o trazer, disse que a senhora ia mandar buscar as malas à noite. Ele não disse nada, detestando cada vez mais a Margarida, que parecia continuar a zelar os interesses da senhora, receber os recados dela, ser ainda a sua confidente. E, como faltava o açucareiro, Godofredo foi áspero, exagerou aquela falta, ameaçou-a de a pôr na rua.

 

A criada destro no corredor resmungou. Ele gritou:

 

         Pouco barulho!

 

E a cada momento o coração dava-lhe pulos à idéia de se ir encontrar com o outro. Com um terror de atravessas a rua, onde talvez se pudesse já falar na sua desgraça, mandou buscar uma tipóia. A criada tardou. O relógio caminhava. E ele nervoso, quase com febre, ia da janela à cancela, calçando as luvas, e parecendo-lhe que o solho que pisava era mole, e que lhe cedia sob os pés. Enfim o coupé chegou. E ele desceu, com a garganta apertada numa angústia horrível. A voz sumia-se-lhe quase ao dar a adresse do seu escritório ao cocheiro. Pareceu-lhe que o trem voava; e naquela emoção ia-se-lhe embrulhando o estômago, o almoço subia-lhe à garganta. Enfim chegou. E era uma atarantação, mal podia achar na algibeira uma placa para pagar ao cocheiro.

 

O escritório dormia no grande silêncio do dia feriado. – e quando ele empurrou o batente de baetão verde o relógio dava onze horas, com o seu tom que soava cavo e triste, sob aqueles tetos baixos. Correu ao seu gabinete, e pareceu-lhe que não tinha entrado ali havia séculos, e que havia alguma coisa de diferente nos móveis e na ordem das coisas. No seu vaso o ramo acabava de secar.

 

E então, bruscamente, uma reação fez-se no seu ser, Diante daqueles móveis, daquelas duas carteiras de sócios, postas uma junto da outra, lembrando-lhe uma intimidade, uma confiança de anos, veio-lhe uma cólera furiosa contra o Machado. As coisas mesmas o acompanhavam nesta cólera. Sim, o Machado era um infame que merecia a morte. E cada cadeira, as paredes mesmas, como embebidas da honra comercial que ali habitava, eram uma acusação muda contra a traição do Machado.

 

De repente um passo leve soou fora: era o Machado.

 

Godofredo, instintivamente, refugiara-se pôr trás da sua carteira, remexendo ao acaso papéis, com a mão trêmula, sem ousar erguer os olhos.

 

O batente abriu-se, era o Machado, pálido como um morto, com o chapéu e a bengala numa das mãos, a outra no bolso das calças, fazendo uma saliência.

 

Mas Godofredo não via isto, não ousava fixá-lo: os seus olhares erravam aqui e além, procurando uma palavra, uma coisa profunda e digna a dizer. Pôr fim, com um esforço, encarou-o: e aquela mão no bolso feriu-o logo, teve um gesto, receando uma arma, um ataque. O Machado compreendeu, lentamente retirou a mão do bolso, foi colocar o chapéu, a bengala, sobre a sua carteira. Então godofredo, trêmulo, com a pressa, a ansiedade de dizer alguma coisa, balbuciou isto:

 

         Depois do que se passou ontem, não podemos continuar a ser amigos.

 

Machado, que tinha a face contraída, com uma expressão de ansiedade, cerrou os olhos, respirou livremente. Esperava uma violência, alguma coisa terrível, e aquela moderação, aquele gemido triste, duma amizade traída, espantou-o, quase o impressionou... Nesse momento desejava poder lançar-se nos braços do seu sócio. E respondeu, com uma emoção sincera, um soluço na garganta:

 

         Infelizmente, infelizmente...

 

Então Godofredo fez-lhe sinal que se sentasse. Machado, com a cabeça baixa, foi pousar-se à borda do sofá de reps. Godofredo deixou-se cair, como uma massa inerte, sobre o mocho, junto à carteira. E durante um momento um silêncio profundo reinou, tornado maior ainda pôr aquela rua de negócio adormecida ao Domingo, sob a calma. Godofredo passava a mão trêmula pela face, pelo rosto, procurando uma palavra.

 

O outro esperava, olhando a esteira.

 

         Um duelo entre nós é impossível – disse enfim Godofredo com esforço.

 

O outro balbuciou:

 

         Estou às suas ordens, disponha...

 

É impossível! -  o Godofredo. – Riam-se de nós... Sobretudo esses duelos que para aí há... Era cair no ridículo... Não podemos, na nossa posição. Toda a praça se ria dum duelo entre dois sócios...

 

E um momento ficou trabalhando pôr esta idéia de serem sócios. Então todo aquele passado que os ligava pareceu erguer-se diante de Godofredo; e nunca sentira tanto a infâmia do Machado como vendo-o ali, naquele gabinete, onde três anos tinham trabalhado juntos. E disse-lho.

 

         A sua infâmia não tem nome...

 

Tinha-se erguido, a sua voz fortalecia-se, e o seu sentimento de amigo traído dava-lhe ao tom agora uma dignidade, uma solenidade que esmagava o outro. Então falou baixo, atirando-lhe as palavras, como punhaladas. Conhecera-o de pequeno; fora ele que o protegera no seu começo da vida; tinha-o feito seu sócio, seu amigo, quase seu irmão. Abria-lhe as portas de sua casa, recebia-o lá, como um irmão.

 

         E pelas minhas costas, o senhor que faz, desonra-me!

 

O outro erguer-se, com a face angustiosa, querendo acabar aquela tortura.

 

         Sei tudo isso – balbuciou, estou pronto a dar-lhe todas as reparações, todas, quaisquer que sejam.

 

Então Godofredo, exaltado, atirou a sua idéia:

 

         A reparação é só esta! Um de nós tem de morrer... Um duelo é absurdo.... Tiramos à sorte qual de nós se há-de-matar.

 

Aquelas palavras patéticas, apenas as soltara, tinham-lhe aparecido como sons estranhos e desconexos: os mesmos móveis as pareciam repelir... mas soltara-as, essas palavras; sentia um alívio, tendo enfim desembaraçado a alma daquilo que desde a véspera lha enchia de perturbação e de tormento.

 

Machado ficara a olhar para ele com os olhos esgazeados.

 

         Tirar à sorte! Como tirar à sorte?

 

Parecia não compreender. Aquele suicídio, tirado à sorte, parecia alguma coisa de grotesco e de doido.

 

Como Godofredo continuasse de pé, junto da carteira, sem dizer nada, mexendo no bigode, impacientou-se, exclamou:

 

         Isso é sério? Isso é dito a sério?

 

Foi então Godofredo que o olhou interdito. O que ele receara realizava-se. Machado achava aquilo absurdo, recusava. Então a sua cólera cresceu, como se visse fugir-lhe a vingança.

 

Já ontem o senhor fugiu, quando o apanhei, fugiu covardemente. Agora quer fugir disto também.

 

O outro gritou, lívido:

 

         Fugir a quê?

 

Uma cólera surda invadia-o, acendia-lhe o olho. Todas as acusações do outro o tinham exasperado. Depois vinha aquela proposta absurda dum suicídio à sorte. Agora insultava-o . Não, isso não toleraria. Balbuciou, já excitado:

 

         Fugir de quê – repetiu -, fugir de que? Eu não fujo de nada...

 

Então – disse Godofredo, batendo com a mão na secretária -, já aqui, tiramos à sorte quem de nós há-de desaparecer!

 

O outro encarou-o um momento, como se o fosse esganar. Depois agarrou vivamente o chapéu e a bengala. E numa voz mordente, decidida, que vibrava:

 

Eu  estou pronto a dar-lhe todas as reparações, e com todo o meu sangue... Mas há-de ser dum modo sensato, regular, com quatro testemunhas, à espada ou à pistola, como quiser, a que distância quiser, um duelo de morte, tudo o que quiser. Estou às sua ordens. Hoje todo o dia, amanhã todo o dia, lá espero, em minha casa. Mas com idéias de doido não me entendo. E não temos mais que conversar...

 

Atirou o batente, os seus passos furiosos soaram um momento fora, e tudo recaiu num grande silêncio. Godofredo ficava só, com as lamentáveis ruínas daquela sua grande idéia, humilhado, confuso, encavacado, com as fontes a latejarem-lhe, sem saber o que havia de fazer.

 

 

 

 

 

VI

 

 

 

 

 

POR FIM, tal qual como fizera o Machado, agarrou vivamente o chapéu e abalou do escritório. E tão estonteado is que foi já na rua do Ouro que se lembrou que não fechara a porta à chave; voltou atrás, e isto pareceu pôr alguma ordem nas suas idéias. Agora estava decidido a bater-se com ele, num duelo de morte, e nenhuma coisa no mundo parecia dever satisfazê-lo, senão vê-lo aos seus pés, com uma bala no coração. Pois que! Aquele homem desonra-o, rouba-lhe o amor da sua mulher, e agora, ainda pôr cima, trata-o como um insensato, chama-lhe de doido! E isto enfurecia-o sobretudo, porque ele agora sentia vagamente que naquela idéia do suicídio à sorte havia alguma coisa de insensato! Talvez houvesse! Mas o outro não lho devia dizer, devia aceitar tudo, resignar-se à reparação que ele exigisse! Não quisera, reclamava uma reparação dum modo regular e sensato. Pois bem, assim seria, bater-se-iam à pistola, com uma só pistola carregada tirada ao acaso, apontada à distância dum lenço! Era ainda o acaso, era ainda a sorte, era deixar tudo à mão justa de Deus.

 

No entanto, dirigira-se rapidamente para o Rossio. O seu amigo íntimo, o Carvalho, aquele que fora diretor da Alfândega de Cabo Verde e que casara rico, morava lá; e era ele o primeiro a quem se dirigia, a contar-lhe tudo, a entregar-se à sua velha amizade; depois iria procurar o outro dos seus grandes amigos, o Teles Medeiros, homem de fortuna e de sociedade, que tinha panóplias de floretes na sala, e a experiência do ponto de honra.

 

Estava dando meio-dia, o sol de julho abrasava as ruas: e as lojas fechadas, a gente nos seus fatos de Domingo, as carruagens de praça abrigadas no lado à sombra, tudo dava uma sensação maior de calma e de inércia. Uma poeira sutil embaciava o azul; e o mesmo som dos sinos arrastava pesadamente, no ar mole. Quando Godofredo trepava as escadas do Carvalho – topou justamente com ele, que descia, satisfeito e fresco, no seu fato novo de cheviot claro, calçando as luvas gris-perle. A figura esbaforida, o ar aflito de Godofredo, espantaram-no: e tornou a subir, abriu ele mesmo a cancela com o trinco, fê-lo entrar num pequeno gabinete, onde havia uma estante e uma longa cadeira de vime, em forma de leito de campanha. Ao lado na sala, tocava-se piano, um tom de valsa rápido, que fazia vibrar a casa.

 

E o Carvalho correu o reposteiro, fechou a janela aberta, antes de perguntar o que era?

 

Godofredo pusera o chapéu a um canto da mesa e imediatamente desabafou, dum jato.

 

Às primeiras palavras de sofá, de braço pela cinta, Carvalho, que tirava lentamente as luvas, ficou petrificado, no meio do gabinete: e foi correr ainda mais o reposteiro, como se receasse que a história daquela traição lançasse uma exalação indecente através do seu prédio. Mas, na atrapalhação com que o Godofredo contara a história, na sofreguidão com que a escutou, não percebera bem quem era o homem, apenas compreendendo que o Machado estava presente: e quando soube que era ele que estava no sofá, bateu as mãos uma contra a outra, teve uma exclamação de horror.

 

         Que infâmia!

 

Um homem que era como um irmão para mim – exclamava Godofredo, baixando a voz, brandindo os punhos. – E paga-me assim... Não, é necessário haver morte de homem. Quero um duelo de morte!

 

Então todo o rosto barbudo do Carvalho exprimiu uma inquietação. Agora percebia. Godofredo não viera ali só desabafar, viera arranjar uma testemunha: e tomava-o logo um susto de burocrata, um medo da lei, o receio de se comprometer. E o seu egoísmo revoltou-se diante das coisas violentas e perturbadoras que pressentia. Quis atenuar, logo procurou explicações. Enfim, se Godofredo não vira mais nada... Se era só estarem na sala... Podia ser uma brincadeira, uma tolice...

 

Godofredo, febrilmente, procurava nas algibeiras. O piano dentro caíra agora a sons vagos, como de dedos que tenteiam, procuram uma melodia esquecida. De repente um bocado do Rigoletto rompeu, com um arranque gemido e soluçante. E Godofredo, que achara enfim a carta, pô-la diante dos olhos de Carvalho. O outro leu a meia voz:

 

-"Ai Riquinho da minha alma, que beijinhos tão bons..."

 

E, como se aquelas palavras, ouvidas na voz do outro, lhe parecessem mais infames que quando ele as lera, não se conteve, elevou a voz, gritou:

 

         Não, isso com sangue, é necessário um duelo de morte...

 

Carvalho, inquieto, fez-lhe sinal que se calasse. E como o piano parou, um momento ficou escutando, receando que o grito do outro tivesse sido ouvido:

 

É a Mariana – disse ele indicando a sala... – Pôr ora é melhor que ela não saiba...

 

Depois voltou a ler a carta, lentamente: e palpou o papel, revirou-o, conservando-o nos dedos com uma curiosidade excitada, como se sentisse ali o calor dos beijinhos...

 

E Godofredo procurou ainda mais pelas algibeiras, descontente de Ter esquecido as outras cartas. Porque havia ainda outras piores! E citou frases, exibiu toda a tolice, todo o descaro de Ludovina, tomado agora apenas do desejo de vencer bem o Carvalho que sua mulher era uma prostituta.

 

         De resto ele não negou, disse a tudo que sim!

 

          O que, vocês falaram?

 

Então, depois duma hesitação, Godofredo acabou a confidência, a sua idéia de um suicídio à sorte, o encontro que tivera com o Machado. O Carvalho, que caíra para cima do sofá, como que brado, esmagado pôr todas aquelas revelações, abria uns grandes olhos na sua face queimada de África, espantado de que aquelas coisas violentas, terríveis, se estivessem realmente passado, e fossem ditas ali, no seu tranqüilo prédio do Rossio...

 

Quando Godofredo contou que o Machado achara aquilo insensato, Carvalho não se conteve.

 

         De doido! De puro doido! – exclamou erguendo-se.

 

E, gesticulando pelo estreito gabinete, procurava uma frase para classificar aquilo, falava ainda de doidice, terminou pôr dizer que semelhantes coisas só se viam no Rocambole:

 

         Vem das na mesma – disse Godofredo. – Porque eu exijo que o duelo seja à pistola, uma só carregada, e tirada ao acaso...

 

Carvalho deu um pulo.

 

Uma só pistola, ao acaso? Mas isso é um assassinato. Não, escusas de contar comigo. Não há motivo para isso... Mas nem que houvesse numa dessas não me metia eu!

 

Vendo-se abandonado, Godofredo revoltou-se. Então, naquela crise terrível, ele, o seu melhor amigo, deixava-o assim ficar mal? De quem melhor amigo, deixava-o assim ficar mal? De quem se havia de valer? A quem havia de confiar a sua honra?

 

O outro despropositou. Falou outra vez de assassinato, de crime e de prisão; terminou pôr dizer:

 

Se tu me viesses convidar para ir deitar fogo ao Banco de Portugal achas que eu devia aceitar?...

 

Godofredo queria explicar que não era a mesma coisa: as duas vozes elevavam-se, entremeadas – e subitamente um silêncio do piano fê-los calar a eles também. Uma conversação elevou-se dentro na sala: depois as vozes elevaram-se tmbém, e havia uma alteração, em que as palavras de "saia branca", "sua porca", "a senhora não disse nada" chegaram com um som irritado. Um momento Carvalho escutou. Depois, encolheu os ombros; havia de ser algum novo desleixo da criada, uma desavergonhada, que tinham havia um mês, e que não fazia nada com jeito. Depois sentindo bater uma porta, dentro, não se conteve, foi ver.

 

Godofredo, só um momento, sentiu como um cansaço invadi-lo. Desde a véspera os seus nervos vibravam, retesados, como as cordas duma rabeca muito afinada. Tudo até ali lhe pareceu fácil, e a sua vingança segura. Mas agora, um depois do outro, recebia dois choques. O outro não quisera o suicídio à sorte; este não queria duelo de morte – e alguma coisa dentro dele começava a afrouxar, como se a sua alma se fosse cansando de estar há tantas horas, numa atitude sombria de vingança e massacre. E vinha-lhe um começo de enxaqueca, a enxaqueca que desde a véspera o ameaçava. Sentou-se no sofá, com a cabeça entre as mãos; um suspiro levantou-lhe o peito.

 

Carvalho entrou, vermelho, excitado. Tinha havido uma cena, ele pusera a criada fora. E então destemperou, queixou-se daquela sorte que o não deixava Ter uma criada decente, tudo uma súcia de desavergonhadas, porcas, e que o roubavam. Tinha saudades das pretas, não havia nada como criadas pretas...

 

E então, dize lá, que pensas tu, de tudo isso? – exclamou com um ar desanimado Godofredo.

 

Carvalho encolheu os ombros.

 

O melhor é deixar tudo como está, tua mulher em casa do pai, tu na tua, e o que lá vai, lá vai...

 

Mas um remorso tomou-o, quis mostrar coração, acrescentou:

 

         Em todo o caso conta comigo para tudo...

 

Lá um duelo regular, a espada, ou à pistola mesmo, para salvar a honra, sim senhor. Cá estou. Lá coisas trágicas não.

 

Godofredo disse então tomando o chapéu:

 

         Vamos ver o que diz o Medeiros, vamos à casa do Medeiros.

 

Carvalho ficou contrariado. Nesse dia ia passar o dia a Pedrouços com a mulher, à casa do sogro. Eram os anos do cunhado.... Mas enfim, num caso daqueles, era necessário fazer alguma coisa pelos amigos.

 

         Vamos lá, deixa-me avisar a Mariana que não posso ir...

 

Daí a pouco voltou, calçando as luvas com um ar desagradável. E já no meio da escada, parou, voltou-se para o Godofredo que seguia:

 

Sabes que minha mulher está de esperanças, hein?... Um susto pode ser fatal, e se ela sabe que eu sou testemunha. Não é brincadeira... Enfim, vamos lá... Os amigos é para as ocasiões,

 

Embaixo tomaram uma carruagem, porque o Medeiros morava lá no inferno, adiante da Estrela. Era um coupé quase novo, fofo e asseado, que rolava sem ruído. Isto pôs Carvalho de melhor humor: e recostou-se, acabando de abotoar as luvas. Durante algum tempo não trocaram uma palavra. Depois, quando o coupé atravessava o Loreto, subitamente uma grande curiosidade pareceu invadir o Carvalho. Godofredo não lhe dera detalhes nenhuns. Que tinha dito Ludovina? Como soubera ele do caso? O que dissera o Neto? Godofredo, com um ar fatigado e em palavras curtas, completou a sua história. O outro desaprovava a mesada de trinta mil réis. Era uma gratificação dada à infâmia... E vendo Godofredo, com o ar abatido, que numa emoção mordia o beiço, como se o invadissem as lágrimas, murmurou:

 

         Esta  vida é uma choldra.

 

E não trocaram mais palavra até casa do Medeiros. Quando bateram à campainha, o criado disse-lhes que o senhor Medeiros ainda estava na cama. Então Carvalho subiu as escadas, abriu o quarto do Medeiros, fazendo barulho, chamando-lhe mandrião e debochado. Atrás, Godofredo ia topando com os móveis na escuridão do quarto. Da sombra dos cortinados, a voz mal-humorada do Medeiros perguntava que invasão era aquela: e, quando lhe abriram a janela, berrou, enterrou-se nos lençóis não podendo suportar bruscamente a invasão da claridade. Mas terminou pôr mostrar a face inchada de sono e estremunhada; depois espreguiçou-se, ergueu-se sobre o cotovelo, e deitou mão a um cigarro, de cima da mesa-de-cabeceira.

 

Carvalho, sentado aos pés da cama, começou: durante um momento falaram daquelas preguiças do Medeiros. Ele explicou que se deitara às cinco da manhã...

 

Depois Carvalho começou:

 

         Vimos aqui para um negócio muito grave.

 

O outro interrompeu-o, dando  um berro pelo criado. Queria saber se viera uma carta pela manhã. O rapazote trazia-a, na algibeira. Medeiros sentou-se na cama, com o cabelo todo esguedelhado, abriu-a, nervoso, leu-a dum olhar, e, dando um suspiro de alívio, meteu-a debaixo do travesseiro.

 

Caramba, ia sendo ontem apanhado. Pôr um segundo... E se o marido entra na cozinha, que é logo ao lado da porta, lá se ia tudo quanto Marta fiou. Irra, que não ganhei para o susto.

 

Carvalho e Godofredo tinham trocado um olhar. E Carvalho teve esta frase infeliz:

 

         Pois é pôr uma coisa dessas que nós cá vimos...

 

E acrescentou:

 

         O Alves teve um desgosto...

 

E, diante do olho arregalado do Medeiros, Godofredo sentiu no fundo a garganta sufocada pelo seu ridículo... Sentiu-se pertencendo a essa tribo grotesca de maridos traídos, que não podiam entrar em casa sem que, de dentro, escapasse um amante. E era assim pôr toda a cidade, uma infâmia pelos cantos, amantes que fugiam e amantes apanhados. Ele apanhara o seu. O outro marido não teria apanhado, se entrasse na cozinha? O dia antecedente fora terrível... E parecia-lhe ver em toda a cidade esta sarabanda, de amantes escapulindo-se, de maridos apanhando-os,  um chassez-croisez de homens, em torno das saias das mulheres... E agora sentia uma fadiga, um horror de tornar a contar a sua história. Mas os olhos do Medeiros, a face do Medeiros, esperavam: e ele terminou pôr dizer, com um ar exausto:

 

         Foi ontem. Apanhei a Ludovina com o Machado.

 

         Caramba! – exclamou o Medeiros dando um pulo na cama.

 

E deitando fora a ponta do cigarro, tomando vivamente outro, quis saber os detalhes. E foi o Carvalho que os deu, falador agora, gozando o seu papel, com aquela confiança de marido dum  estafermo rico que ninguém jamais tentava. Contou tudo, enquanto, esmagado sobre uma cadeira, com o chapéu alto ainda na mão, Godofredo ia aprovando com a cabeça.

 

         Deixa ver a carta – terminou pôr dizer o Carvalho.

 

E Godofredo tirou-a do bolso, o outro leu-a a meia voz, pela Segunda vez o marido ouviu voz estranha murmurar aquelas palavras da sua mulher: "Ai Riquinho da minha alma, que tarde a de ontem..."

 

E Medeiros, em camisa, repetia a frase, lembrando-se dos olhos negros de Ludovina, do seu papel, revirando-o também em todos os sentidos como o outro fizera.

 

E subitamente veio-lhe um furor terrível contra o Machado. Que diabo, já era necessário ser canalha! Enfim, ela tinha culpas no cartório. Quando elas queriam, que diabo, não se podia ser José do Egito... Mas nunca com a mulher dum amigo íntimo, e de mais a mais dum sócio...

 

         Isso pede sangue – disse ele, excitado, saltando para o meio do quarto em camisa, com os pés nas chinelas.

 

Godofredo exclamou, ressalvando logo a sua coragem:

 

         Eu queria um duelo de morte, mas logo a sua coragem:

 

Então Carvalho apelou para o amigo Medeiros olhou-os, espantado. Não, decerto que não. Nem havia motivos para isso, nem...

 

Era a Segunda vez que ele ouvia aquela razão que não havia motivo: e então barafustou:

 

         Não há motivo! Então qual é o motivo bastante para que dois homens se matem?...

 

         Um escarro na cara, ou uma coisa dessas – disse com autoridade o Medeiros que, ainda em camisa, dava à pressa uma penteadela no cabelo.

 

Godofredo queria argumentar, mas o outro, voltando-se, com o pente na mão, terminou a questão:

 

         Mesmo que houvesse motivo, eu uma coisas dessas não aceito. Numa dessas não me meto...

 

         Aí tens tú! – exclamou Carvalho em triunfo.

 

         Que disse eu? Ninguém quer uma responsabilidade dessas... Eu, de mais a mais, com a mulher de esperanças... Olha que brincadeira.

 

Um momento Alves ficou como abatido. E todavia sentia um começo de alívio, como se parte de toda aquela indecisão em que estava desde a véspera desaparecesse, e alguma coisa se fixasse. Agora estava decidido que não haveria sortes, nem acasos; que não haveria morte de homem; e em toda aquela atarantação em que até ali estivera, isto formava um ponto fixo, uma base, uma decisão, em que se poderia apoiar. E não era ele que o decidira: eram os seus melhores amigos, que raciocinavam a sangue-frio. Mas, em todo o caso, posta de parte a morte dum deles, alguma coisa se havia de fazer.

 

         Que aconselham então vocês, que se há-de fazer? Eu não hei-de ficar assim, de braços cruzados...

 

Medeiros, então, de pé no meio do quarto, em camisa, com as canelas magras à mostra, os pés numas grandes chinelas, exclamou, com solenidade:

 

         Queres pôr a tua honra nas minhas mãos?

 

Está claro que queria, não estava ali para outra coisa.

 

         Bem – exclamou Medeiros. – Então não tens mais que pensar. Deixa-te levar, nós arranjaremos tudo.

 

E foi para dentro, para um cubículo, onde o ouviram lavar os dentes, bochechar, fazer uma tempestade dentro da bacia.

 

Godofredo porém não parecia satisfeito, aproximou-se da porta do cubículo, queria ainda saber...

 

         Não tens nada que saber – exclamou de dentro o outro, lavando-se, com um ruído de esponja e água... – Nós também não podemos saber. Temos de ir primeiro ao Machado, ver o que ele diz, entendermo-nos com as testemunhas dele, etc.... Tu vais para casa, e não saias até que nós apareçamos... E deixa-nos aí tipóia, ouviste, para dar esses passos todos... Domingos, escova a sobrecasaca preta; e calças pretas... Tudo de preto...

 

Ouvindo isto, Carvalho deu um olhar ao seu próprio fato de cheviot claro. Mas ele não era dessas pieguices de toilettes : com uma camisa lavada em cima da pele, um homem estava decente para ir a toda a parte.

 

Godofredo todavia passeava ainda pensativo. E terminou pôr dizer ao Carvalho o que o perturbava:

 

         É necessário que vocês levem já condições feitas. E eu, menos de ser à pistola e a vinte passos...

 

         Deixa lá isso com o Medeiros – disse o Carvalho.

 

E o Medeiros, aparecendo logo, com a toalha na mão, o cabelo molhado, acrescentou:

 

Olha, tu entenderás de coisas de negócios. Mas de coisas de ponto de honra, entendo eu... Tu desde este momento não tens senão a esperar que nós te vamos dizer – é a tais horas, em tal sítio, e com tais armas. E depois no dia seguinte, marchar! Não tens mesmo que te ocupar do médico. Eu peço ao gomes, que entende muito de feridas... E não é homem para perder a cabeça, se um de vocês ficar escalavrado de todo.

 

Godofredo sentiu pela espinha um arrepio, e o coração encolher-se. E do lado, Carvalho dizia:

 

         E tu vais para casa, se tens que fazer, ou papéis a pôr em ordem, ou outra coisa...

 

Não falara em testamento, mas era uma alusão ao testamento. E aquilo irritou Alves. Decerto ele era o primeiro a querer que o duelo fosse sério, fosse mortal... Mas enfim, aqueles seus dois amigos, os seus melhores amigos, os seus íntimos, um a falar já de feridas, outro a empurrá-lo para a porta para ir fazer testamento, pareciam-lhe grosseiros, inutilmente cruéis... Sem uma palavra, desceu.

 

E atirando-se, pensou esta coisa profunda:

 

         Aqui está para que a gente se casa! E aqui está para que se quer ter família!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

VII

 

 

 

Às seis horas da tarde, Godofredo, em chinelos, no seu gabinete, acabava de lacrar um maço de papéis, quando a campainha retiniu e os seus dois amigos apareceram. Carvalho, apesar da sua indiferença pela etiqueta, fora mudar de fato, estava de sobrecasaca preta: - e ambos traziam um ar grave.

 

Medeiros, agora muito correto, com o bigode encerado, sentou-se no sofá – na sala onde a criada os introduzira – e começou a tirar lentamente as suas luvas pretas, e olhava Godofredo.

 

         Estás aí a rebentar de curiosidade? Pois olha, pôr ora nada feito.

 

Godofredo, que tivera os olhos cravados nele, e estava muito pálido, pareceu respirar melhor. Mas subitamente enfureceu-se. Como nada feito? Então o infame recusava-lhe uma reparação.

 

Carvalho acudiu:

 

         Não, senhor. A cada um o que é seu, o Machado nisto anda bem.

 

         Então?

 

         Foram as testemunhas, que se mostraram recalcitrantes – disse o Medeiros. – Aqui está o que foi.

 

Era uma longa história, que o Medeiros contou com detalhes, gozando. Tinham falado ao Machado, que lhes prometeu que dois amigos dele estariam às quatro horas em casa dele, Medeiros. E pontualmente apareceram lá o Nunes Vidal, que ele conhecia perfeitamente , rapaz de experiência em coisas de honra, e o Cunha, o Albertinho Cunha, que pouco falara, estava como um comparsa. Entraram, cumprimentos, etc., tudo muito grave, e toda a amabilidade. Depois vieram à questão: o Nunes Vidal declarou logo que, em princípio, o sr. Machado estava pronto a aceitar todas as condições, todas quaisquer que fossem, propostas pelo sr. Alves. Inteiramente todas. Mas que ele, NunesVidal, e ali o seu amigo Cunha entendiam que o dever das testemunhas, num conflito, era, antes de tudo, procurar paz e conciliação. E que portanto, se em princípio o seu constituinte, o sr. Machado, pôr um excesso de pundonor e orgulho estava disposto a deixar-se matar, eles, suas testemunhas, que tinham tomado nas suas mãos os interesses dele, estavam ali, e tinham vindo ali não só para procurar, tanto quanto possível, o evitar que sucedesse uma desgraça no campo ao seu amigo, mas mesmo que em volta do nome dele se fizesse um escândalo, que o prejudicaria...

 

         Tudo isto muito bem dito – acrescentou o Medeiros -, tudo muito bem explicado, com bonitas palavras... Sério, gostei do Vidal.

 

         Ah, rapaz de muito talento – murmurou o Carvalho.

 

Enfim o Vidal terminara pôr dizer que, tudo bem considerado, não julgavam que houvesse motivo para um duelo grave à pistola.

 

Outra vez a falta de motivo. Godofredo despropositou:

 

         Com mil diabos, então que queria esse asno que o Machado me tivesse feito de pior?

 

Com um gesto, Medeiros conteve-o.

 

         Não te exaltes, não te exaltes... Deixa estar que lá lhe disse tudo. O Vidal é muito esperto, mas olha que eu não me calei. Pergunta ao Carvalho...

 

         Andaste como um rábula – disse Carvalho.

 

         Mas então que diabo disse o Vidal? – exclamou ainda Godofredo.

 

O Vidal dissera que não havia motivo de sangue, porque o que se passara entre Machado e a senhora fora um simples namoro...

 

Godofredo teve um gesto furioso. E o Medeiros, erguendo-se também:

 

         Não te exaltes, escuta. Eu lá lhe disse tudo. Contei-lhe do modo como o apanhaste, e a carta, meu riquinho que tarde a de ontem, e o resto. Apresentei-lhe todos os dados para o convencer que o adultério era completo... Não é verdade, Carvalho?

 

         Todos.

 

         Disse-lhe claramente: o meu constituinte, o nosso amigo Alves, é, em toda a extensão da palavra, um marido que... Enfim, necessita reparação. Não é verdade, Carvalho?

 

Carvalho fez um gesto de assentimento.

 

         Mas o Nunes provou-me que não. Tinha lido as cartas ele também, o Machado contara-lhe tudo, e depois de Ter combinado, pensado, chegara a este resultado: que não passara de namoro.

 

Houve um silêncio na sala. Godofredo passeava vivamente, com as mãos nos bolsos. Carvalho examinava vagamente em quadro representando Leda e o cisne. De repente, Godofredo parou, exclamou, com uma voz surda, espaçando as palavras:

 

         Aí nesse sofá, os vi eu abraçados um ao outro... Que diz a isto o Nunes?

 

Esse é que é o único ponto – exclamou Medeiros. – Esse ponto é que se não pode negar porque tu viste, com os teus olhos. Mas o Machado explicou ao Nunes. E o Nunes explicou-nos a nós. Era uma brincadeira, era a rir, era a fazer cócegas...

 

         E a carta, que tarde a de ontem? – exclamou Godofredo.

 

Disse o Nunes que naturalmente se refere a um passeio que vocês deram a Belém. Vocês foram a Belém?

 

Godofredo pensou um momento. Sim, tinham ido a Belém. Era verdade que tinham todos três ido a Belém.

 

         Então aí tens. Era a lembrar o prazer de terem ido todos, a patuscada, a passeata, etc...

 

         De modo que – exclamou Godofredo – fica tudo nisto... Não há nada. Tenho de tragar a afronta.

 

Medeiros ergueu-se indignado. Ora essa, então pôr quem o tomava ele? Tinha ou não Alves posto a sua honra nas mãos dele e do Carvalho? Tinha. Então não podia supor que eles, seus amigos, o deixassem na lama, miseravelmente...

 

         Mas – murmurou Alves.

 

         Mas que? Está claro que te hás-de bater. Foi o que se decidiu. Não há motivo para que seja à pistola, porque foi um simples namoro. Mas como o sr. Machado não tem direito a namorar a tua mulher, há todo o motivo para que seja à espada, um duelo mais simples... Vamos nos encontrar logo com eles em minha casa, às oito horas, e combinar tudo.

 

E não temos muito tempo a perder – disse  Carvalho puxando o relógio – porque são seis e meia, ainda temos de jantar. Eu  estou a cair...

 

Godofredo ofereceu-lhes  então que jantassem lá. De resto ele tinha calculado que apareceriam à hora do jantar e mandara preparar um bocado de assado a mais.

 

Não haverá mais que um bocado de assado – disse ele -, mas enfim, em campanha tudo basta... e nós estamos em guerra.

 

Era a primeira vez que sorria desde a véspera. Mas aquela companhia dos seus amigos ao jantar alegrava-o, evitando-lhe a solidão que ele temia.

 

E o jantar foi alegre. Tinha-se combinado que não falariam do duelo, nem do caso: mas logo desde o cozido, em todos os momentos que Margarida não estava presente, voltavam a essa idéia, pôr frases curtas e alusões vagas. Pôr fim, Godofredo disse à Margarida que não voltasse sem que ele tocasse a campainha: e então a conversação não cessou mais. Godofredo contou como conhecera Ludovina, e o seu namoro, e o dia do casamento. Depois falou do Machado, mas já sem cólera, chegando mesmo a dizer que era um rapaz brioso. Era ele que o ia buscar ao colégio quando o Machado era pequeno: e às vezes levava-o ao teatro. E estas recordações enterneciam-no, terminou pôr engolir um soluço, disse que se não falasse mais em semelhante coisa. Tocou a campainha, a Margarida trouxe o assado. Houve um curto silêncio, o Medeiros gabou o vinho de Colares. Carvalho, a respeito do Colares, que ele costumava beber em Cabo Verde, lembrou um caso de duelo em que ele lá fora testemunha: e apenas Margarida saiu, contou-o logo: era parecido com o do Alves, também pôr causa duma mulher, mas essa, preta. Isto parecia incrível ao Medeiros. Mas Carvalho gabou a preta, com o olho brilhante:

 

Em a gente se acostumando, não quer senão daquilo... A preta é grande mulher.

 

         Mas que diabo, não falemos mais de mulheres – disse Godofredo.

 

E neste pedido, que ele acompanhou de um vago sorriso, havia como uma resignação na sua desgraça, uma idéia nascente de gozar a vida, na companhia de amigos, nas preocupações do negócio, sem os desgostos que traz invariavelmente a paixão das saias. Então falou-se do Nunes. Medeiros estava contente de num caso tão sério como aquele Ter encontrado pela frente o Nunes, rapaz sério, de experiência e de honra. Estava ao princípio com medo que o Machado tivesse a idéia de nomear para padrinho aquele idiota do Sigismundo, com quem andava sempre. E isto trouxe de novo à conversa o Machado. Então, um pouco animado pelo Colares, Medeiros confessou que já tinha pregado uma ao Machado: tinha sido o amante da francesa com quem ele estivera. Então começou a falar de si, das suas conquistas: e voltou à história da véspera, quando estivera para ser apanhado na cozinha. O Carvalho também tivera uma história assim, em Tomar. Mas aí tivera de saltar pela janela, e caíra em cima duma estrumeira... O Carvalho sabia pior do que isso: um amigo dele, o Pinheiro, não o magro, o outro, o picado das bexigas, que tinha estado escondido num curral de porcos seis horas. Ia morrendo. E quando via um porco punha-se branco como a cal. Então foi entre o Carvalho e o Medeiros um desfilar de anedotas de adultérios. O Godofredo, homem casado e honesto, não tinha destas anedotas: a sua vida fora toda doméstica, sem aventuras, e escutava, bebendo o seu café aos goles, gozando aquele fim alegre de jantar, sorrindo pôr vezes.

 

E terminou pôr sentir um hálito quente de mocidade, dizer filosófico:

 

         Homem, é melhor a gente divertir-se pôr sua conta, que os outros se divirtam à nossa custa...

 

As oito horas aproximavam-se. Carvalho começou a calçar as luvas pretas, Então Godofredo falou em os acompanhar: meter-se-ia dentro do quarto do Medeiros – enquanto se celebrava a conferência na sala -, e eles poupavam assim o trabalho de voltar, a dar-lhe parte do resultado, à rua de São Bento. E – apesar de Carvalho Ter achado isto contra a etiqueta – terminou pôr consentir, pôr não ser coisa muito grave.

 

Foi-se buscar uma carruagem, e apinhados dentro dela todos três – partiram para a Estrela.

 

Em casa do Medeiros, o criado já acendera velas nos lustres; e eles tinham apenas subido a escada quando a campainha retiniu. Eram os outros, muito pontuais. Então Godofredo foi esconder-se no quarto: os outros entraram na sala, onde se elevou logo o rumor de vozes. No quarto às escuras, Godofredo, sem ousar chamar o criado, procurava, apalpava, sobre a mesa e o toucador, à cata duma caixa de fósforos. Não achou, mas o seus dedos encontraram um reposteiro, correu-o, e viu diante uma fenda de luz numa porta, pôr trás rumor de vozes. Era, do outro lado, a sala, onde estavam a conferenciar. Adiantou-se, mas topou com um jarro, que rolou com um som de água, entornando água. Então ficou um momento imóvel, depois chapinhando umidade, foi encostar o ouvido à fechadura. Mas tinha-se feito um silêncio, que ele não compreendia. Só pôr vezes um dos amigos do Machado tossia. Que diabo estavam fazendo? Quis espreitar, mas viu, vagamente, um bocado de espelho onde se refletia a luz do candeeiro. Subitamente a luz desapareceu, houve diante dele o quer que fosse de negro, decerto as costas dum deles. Então uma voz elevou-se, era a do Medeiros; dizia "que lhe parecia concludente..." . E  foi logo um rumor de duas outras vozes, que se misturavam, cresciam, que ele não podia ouvir. Depois uma outra voz fria, disse muito distintamente:

 

         Nisto é necessário sobretudo dignidade.

 

Com efeito era  necessário dignidade – e não era digno estar ele ali escutando. Voltou então ao quarto às apalpadelas – e tendo topado com o sofá, sentou-se. Agora não havia rumor, e um ar abafado pesava no quarto. E aquela escuridão trouxe-lhe idéias de doença... No dia seguinte podia ele estar talvez, assim num quarto, às escuras, prostrado num leito; e só, sem ninguém, tratado pela Margarida. Isto causou-lhe um grande horror. Começou a lembrar-se de histórias de ferimentos que ouvira. Um golpe de espada ao princípio fazia apenas um frio – as dores eram depois, longas, nas noites longas, quando os colchões aquecem e o corpo se não deve mover... Então pensou em tudo que dissera o Nunes ao Carvalho: era a primeira vez que o Machado a abraçava, pôr brincadeira. E se isto fosse verdade? Também ela lho dissera, num grito de dor: era a primeira vez. Podia ser bem apenas uma leviandade, um galanteio, o que os ingleses chamam uma flirtations . Deveria perdoar? Não. Mas não era então motivo para haver um duelo. Bastava-lhe expulsar Machado de sua casa. E então outras coisas acudiam-lhe: nunca, como ultimamente, Ludovina fora mais amante. Outrora era ele que lhe devia fazer festas, a provocá-la... Ultimamente era ela, que às vezes, sem motivo, lhe atirava os braços ao pescoço. Podia ele afirmar que ela o não amava? Não. E não era fingido, ele não era tolo, sabia bem conhecer uma emoção sincera. Pôr que consentia então ela na corte do outro? Quem sabe! Coquetismo, vaidade... Em todo o caso isso merecia castigo. Nunca mais a veria; e bater-se-ia com o outro... Depois pensou que nunca manejara uma espada. E o Machado tinha dado lições de esgrima. Decerto era ele que ficaria ferido. E o mesmo terror voltava-lhe. Parecia-lhe que não temeria tanto, a morte brusca, uma bala através do coração. Mas uma ferida grave, que o retivesse na cama semanas, com toda a sua lenta marcha, a febre, a inflamação, o perigo de gangrena. Era horrível. Toda a sua carne tremia, se encolhia a essa idéia. Mas enfim acabou-se, era a honra que o pedia.

 

De repente ouviu vozes no corredor, risos, todo um barulho cordial de amigos que se despedem. O coração batia-lhe. Tinha caminhado para a porta do quarto. Uma luz apareceu. Era o Medeiros com uma vela, com que alumiava os outros.

 

         Tudo resolvido – disse entrando.

 

Atrás dele entrava o Carvalho, dizendo também:

 

         Está tudo decidido.

 

Godofredo olhava-os, pálido, a tremer, de nervoso.

 

         Não te bates – disse o Medeiros pondo o castiçal sobre a mesa.

 

Que te disse eu logo? – exclamou Carvalho, radiante. Tudo tinha de ficar na mesma, a não haver senso comum.

 

E foi desta vez ainda, o Medeiros, que explicou a conferência. O Nunes Vidal portara-se com um cavalheirismo extraordinário. Começara pôr dizer que se estivesse convencido que havia ali uma traição do Machado, um crime de adultério com a mulher do seu sócio, ele não se meteria nisso. Dissera-lhes que se eles exigiam o duelo, eles tinham normas de aceitar tudo, sem discutir, hora, e sítio, e estocadas. E, chegado ao terreno, Machado tomaria a espada, deixar-se-ia ferir, como um gentleman. Mas então Nunes apelara para eles, como homens de honra e de bom senso.

 

         Não foi isto que ele disse, Carvalho?

 

         E homens de sociedade – acrescentou Carvalho.

 

Justamente, e homens de sociedade. Apelou para nós, se nós devíamos consentir um duelo, quando não havia motivos, e quando o Machado, numa carta que o Nunes me deu a ler, lhe afirmava sob a sua sagrada honra de homem, que a sra. dona Ludovina era inocente, perfeitamente inocente. Não houvera mais que umas cartas tolas trocadas, sem importância, e aquele abraço... Ora agora, dizia o Nunes: o que faz um duelo? Compromete a sra. dona Ludovina, faz crer ao público que houve realmente adultério, torna ridículo o sr. Alves e prejudica a firma comercial...

 

         E o dilema do Nunes – lembrou do lado o Carvalho.

 

É verdade, o dilema – gritou Medeiros, recordando-se. – O Nunes apresentou este dilema: os senhores pedem a espada, se houve adultério o duelo à espada é ainda pouco; se o não houve é demais. De maneira que resolvemos que não houvesse duelo...

 

Godofredo não dizia nada. Mas uma sensação de paz e de serenidade invadia-o silenciosamente. Aquelas grandes afirmações do Nunes, um rapaz de tanta honra, quase o convenciam de que realmente não houvera senão um galanteio. Ele mesmo o dissera: se estivesse convencido que havia adultério, não se teria metido nisso. E não, que era um verdadeiro fidalgo. Ora se era um simples galanteio não havia realmente motivo para que se batessem, e isto dava-lhe um alívio, mil idéias abomináveis desapareciam, outras surgiam, de repouso, de tranqüilidade, talvez de felicidade ainda. Decerto não perdoaria a sua mulher aquele simples galanteio. Não tornaria a falar ao Machado. Mas a vida ser-lhe-ia menos amarga pensando que eles realmente o não tinham traído.

 

Aquilo consolava o seu orgulho. E mostrava que era um marido rígido, e de honra – expulsando sua mulher só pôr um simples olhar trocado. Assim a sua honra estava salva, o seu coração sofria menos.

 

E agora invadia-o uma alegria, de sair enfim daquelas idéias violentas de morte, em que andava envolvido, e reentrar na rotina da vida, no seu negócio, nas suas relações, nos seus livros. Mas então, à idéia da rotina, da casa comercial, uma idéia tomou-o, encheu-o de perturbação.

 

         E o Machado? Eu não posso falar mais ao Machado!

 

Mas Medeiros tinha discutido esse ponto com o Nunes. E fora o Nunes que tivera uma idéia de bom senso. Aqui está o que o Nunes dissera. Desde o momento em que não há motivo para duelo, não há motivo para que se interrompam as relações comerciais...

 

Godofredo protestou:

 

         Então há-de amanhã entrar pelo escritório?

 

Quem te diz amanhã, homem? Aqui está o que disse o Nunes, é o que faz o Machado. Amanhã escreve-te uma carta oficial, para que o guarda-livros veja, e o caixeiro, dizendo que vai para fora da terra, com a mãe, e que te pede que olhes pela casa, etc... Depois, ao fim de um ou dois meses, volta, vocês cumprimentam-se, sentam-se cada um a sua carteira, falam no que têm que falar acerca do negócio, e acabou-se. O que não têm é relações íntimas, escusam mesmo de se tratar pôr tu.

 

E como Godofredo olhava o chão, refletia, os dois caíram sobre ele.

 

         Tapas assim a boca ao mundo – disse o Carvalho.

 

         Salvas-te do ridículo – disse o Medeiros.

 

         Manténs a firma intacta e unida...

         Livras tua mulher de má fama!...

 

         Conservas um sócio inteligente e trabalhador.

 

         E talvez um amigo!

 

Então uma fadiga invadiu Godofredo. Os seus nervos relaxaram. Veio-lhe um desejo de não pensar mais naquele desgosto, não falar mais nisso, dormir tranqüilo; e cedeu, abandonou-se, perguntou com a voz do coração:

 

         Então vocês acham, em sua honra, que assim tudo fica bem?

 

         Achamos – disseram ambos.

 

Godofredo apertou a mão a um, depois ao outro, comovido, quase com lágrimas:

 

         Obrigado, Carvalho. Obrigado, Medeiros.

 

Depois, para fazer logo tapar as bocas do mundo, foram ao Passeio Público – onde havia essa noite iluminação e fogo preso, indo primeiro tomar sorvete ao Martinho.

 

 

 

 

 

VIII

 

 

 

 

 

Então começou para Godofredo uma existência abominável.

 

Tinham passado semanas e Machado voltara, ocupava agora, como sempre, a sua carteira no gabinete de reps  verde. Godofredo temera sempre aquele encontro, não julgara possível que eles pudessem passar dias, um ao lado do outro, manejando os mesmos papéis, tocando-se pôr mil interesses comuns, com a idéia daquele dia nove de julho, aquele encontro sobre o sofá. Mas pôr fim tudo se passara convenientemente, e não havia atritos.

 

Na véspera da sua chagada Machado escrevera-lhe uma carta, polida, quase humilde, em que se percebia mesmo certo tom de tristeza; dizia-lhe que ia voltar, que no dia seguinte apareceria no escritório, e que esperava que toda a idéia do passado desaparecesse nas suas novas relações, e que estas fossem sempre dominadas pôr uma respeitosa cortesia; acrescentava que compreendendo porém as dificuldades desta nova situação, ele só a aceitava pôr algum tempo para salvar a dignidade e fazer calar a maledicência, reservando-se o deixar a firma logo que o pudesse fazer sem escândalo. Nesse dia, Godofredo foi mais cedo ao escritório, e fez uma coisa hábil: disse ao guarda-livros, diante do caixeiro, que  houvera entre ele e o sr. Machado certas desinteligências, e que as suas relações tinham sofrido modificações.. Estas palavras vagas tinham pôr fim evitar a surpresa, os comentários do guarda-livros, quando os visse agora, defronte um do outro, secos, corteses, e tratando-se pôr senhor Alves e senhor Machado. O guarda-livros murmurou que sentia muito; e dali a instantes Machado apareceu. Foi um momento desagradável. Durante todo o resto do dia mal puderam dar atenção ao que faziam: e o menor movimento do Machado, o puxar do lenço, um passo ao soalho despertavam em Godofredo toda a sorte de lembranças desagradáveis. Uma ou duas vezes atravessou-o um desejo violento de o vituperar, acusá-lo de todas as tristezas que agora enchiam a sua vida: mas conteve-se, apenas se vendo impotente para engolir um ou outro suspiro.

 

A atitude do Machado foi respeitosa e triste. E quase não trocaram uma palavra. O quer que fosse de angustioso pesava no ar. E o estúpido do caixeiro tornava todo este embaraço mais saliente, teimando em andar em bicos de pés, como numa casa onde há um morimbundo.

 

Outros dias iguais repetiram-se; mas pouco a pouco a presença do Machado deixou de impressionar Godofredo. Já o podia ver sem pensar no sofá. Estabeleceu-se uma rotina. O que entrava pôr último dava os bons-dias polidos ao outro – e depois só falavam em assuntos de negócio; quando não havia que fazer, o Machado saía, abandonando o gabinete a Godofredo, que ficava lendo os jornais no sofá. E isto continuou regular, sem atritos, porque Machado não tinha senão, no fundo, estima pelo bom Alves, e Alves, a seu pesar, conservava um fundo de simpatia pôr aquele rapaz que quase educara. Debalde se dizia a si mesmo que fora do negócio era um traste: o simples tom da sua voz, os seus bonitos modos atraíam-no a seu pesar.

 

Assim foi que, quando vieram os primeiros dias de outubro, toda aquela tumultuosa agitação que se fizera na vida de Godofredo, e que o trouxera semanas como sonâmbulo, se calmou. Ludovina estava na Ericeira com o pai: e a lembrança daquele momento em que a vira no sofá amarela, que ao princípio fora no coração do pobre Godofredo como uma chaga viva que o menor movimento, o menor atrito, irritava – era como uma ferida ainda, mas cicatrizada, causando apenas uma dessas surdas e vagas dores a que o corpo se habitua. O choque desagradável do encontro com o Machado passara também; no escritório da rua dos Douradores estabelecera-se agora uma rotina de relações frias, corteses, toleráveis. E agora, mais calmo, Godofredo podia reparar mais, sentir mais todos os detalhes daquela vida de viúvo, que devia ser agora a sua para sempre – e só descobria desconforto e tristeza. Ao princípio pensara em deixar a casa da rua de São Bento, ir viver para o hotel; mas depois receou a opinião, a maledicência. Ninguém sabia que ele estava separado de sua mulher. Supunha-se que ela estava a banhos, com o pai, e que Godofredo a ia ver de vez em quando. E ele tinha pôr todos os meios de manter esta ficção. Além disso, que havia de fazer às duas criadas? Porque persistia na idéia de manter o silêncio em torno da sua desgraça, conservando sob chave, ligadas a ele pelo interesse duma boa situação, aquelas duas criaturas que a conheciam. Ficara pois em São Bento, e a sua existência, ali, era desgraçada. Um a um os confortos que ele tanto amava tinham desaparecido – porque as duas mulheres, sem ama que as vigiasse, tendo percebido que o senhor as não despediria, dependia da língua delas, estavam inteiramente relaxadas.  A tortura do dia começava para Godofredo às nove horas. Era toda uma tortura para que lhe trouxessem água para a barba: nunca havia água quente; a cozinheira, que se levantava agora tarde, não tinha o lume aceso às dez horas. Depois era outra luta para obter o almoço, e quando vinha, feito à pressa, sem cuidado, sem vaidade, quase o enjoava. Desde agosto que todas as manhãs lhe apareciam os mesmos ovos quentes – ora crus, ora cozidos de todo – e os mesmos bifes córneos, negros, como duas liras de couro tisnado. Ele sentava-se, olhava com horror para o guardanapo sujo. Ai, onde estava o tempo em que Ludovina ela própria lhe is fazer o seus ovos quentes, pelo relógio de areia? Então havia sempre flores na mesa, e o seu Diário de Notícias e o seu Jornal do Comércio estavam ao lado do prato, ele desdobrava-os, sentindo em redor o rumor das saias dela, o calor da sua presença, o vago aroma de vinagre de toilette.

 

Quando voltava às quatro horas, os restos deste triste almoço ainda estavam sobre a mesa, com o molho dos bifes seco no prato, um resto de chá no fundo da chávena, - tudo sujo e triste sob o vôo das moscas. Pelo chão ficavam migalhas de semanas. Todos os dias se quebrava alguma coisa. E ao fim do mês eram contas enormes, um desperdício, um excesso absurdo de gastos. Já duas vezes encontrara homens na escada, ou visitas para as criadas. A sua roupa suja arrastava pelos cantos – e, quando ele se enfurecia, entrava na cozinha como uma bomba, dava berros, as duas criaturas não respondiam, fingiam uma compunção mais odiosa ainda do que uma resposta insolente. Baixavam a cabeça, davam com respeito uma desculpa absurda, depois ficavam dentro rindo, e bebendo copinhos de vinho.

 

Mas o pior eram as noites solitárias. Fora sempre um homem muito caseiro, que às nove recolhia, calçava os seus chinelos e gozava o seu interior. Ordinariamente, na sala, Ludovina tocava um bocado de piano; ele mesmo ia acender as luzes, com a devoção de quem prepara um altar, porque adorava a música; e vinha acabar o seu  charuto, numa poltrona, ouvindo-a tocar, vendo a massa negra do seu cabelo que lhe pendia nas costas, numa graça de desalinho e de abandono. E havia certas músicas que lhe davam a sensação de Ter o coração acariciado pôr alguma coisa de aveludado e doce, que o fazia desfalecer: sobretudo uma certa valsa Souvenir d'Andalousie... Há quanto tempo ele a não ouvia.

 

Enquanto durou o verão, todas as tardes dava o seu passeio: mas o espetáculo mesmo das ruas trazia-lhe à memória a sua felicidade perdida. Era  uma varanda aberta, com uma senhora de vestido  claro tomando o fresco, que lhe recordava a sua casa deserta, onde não havia um rumor de saia; ou era ao anoitecer, uma janela deixando sair a claridade discreta dum serão tranqüilo, e donde vinham sons de piano... Ele, fatigado, com os botins empoeirados, sentia então, dum modo agudo e doloroso, a evidência da sua solidão.

 

Mas as noites piores eram as que passava no Passeio Público: levava-o lá o horror de estar só; mas aquela solidão entre gente, sob árvores alumiadas a gás, vendo tanto homem levando uma mulher pelo braço, era-lhe mais dolorosa que a sua sala deserta e fria, com o seu piano fechado.

 

Depois foi pior quando começou o inverno. Novembro foi muito chuvoso  Ele voltava do escritório, e, depois do jantar ordinário que comia à pressa, ficava, com os pés nos chinelos, aborrecendo-se e errando da sala para o quarto. Nenhuma cadeira, pôr mais confortável, lhe dava a satisfação de repouso e de bem-estar; e os seus livros queridos pareciam Ter perdido subitamente todo o interesse, desde que não a sentia ao seu lado, costurando à mesma luz a que ele lia. E um pudor, um escrúpulo, uma vaga vergonha impediam-no de ir aos teatros.

 

Além disso uma inquietação tomava-o constantemente, desde que ela voltara da Ericeira e que a sabia ali na mesma rua, a dez minutos de caminho daquela casa onde ele sofria todas as melancolias da viuvez. Vinte vezes pôr noite, o seu pensamento fazia esse caminho, subia as escadas do Neto, penetrava na sala que ele conhecia, com a sua chaise-longue que ela se costumava sentar quando iam ver o Papá; e vinha-lhe um ciúme, um desespero pensando que a essa hora ela estaria lá sentada, com uma costura ou um livro na mão, tranqüila, sem pensar nele.

 

O Neto, à volta da Ericeira, viera vê-lo. E cada palavra daquele maroto fora uma punhalada. Tinham gozado muito na Ericeira – não viam ninguém, enfim, porque as circunstâncias da Ludovina não permitiam folias e pic-nics – mas tinham passado bem em família. Ludovina tomara banhos; estava forte, gorda, e nunca ele a vira com tão boa cara; tinha-se aplicado muito ao piano, e parecia resignada e de bom humor. E depois de lha pintar assim tão apetecível saíra, sem dizer a palavra pôr que Godofredo ansiava – uma simples palavra: fazer as pazes.  

 

Porque o desejava ardentemente. Somente não queria das o primeiro passo, pôr orgulho, pôr dignidade, pôr um resto de amuo e de ciúme. Mas entendia que Neto é que devia impor essa reconciliação – e começava agora a odiá-lo, vendo que ele queria conservar a filha em casa. Percebia bem.  O patife não desgostava dos trinta mil réis, que lhe vinham assim todos os meses. Pensou mesmo em lhe retirar a mesada. Um sentimento de cavalheirismo impedia-lhe de o fazer.

 

E o que o torturava não a ter visto ainda. Debalde passava e repassava pela casa de Neto; debalde ia aos domingos à missa, à igreja dela; debalde ia passar pela casa da modista dela, uma dona Justina no largo do Carmo, com a esperança de a ver de lá sair, ou entrar. Nunca a encontrou até dois dias antes do Natal. Estava nessa manhã, numa tabacaria ao alto do Chiado, acendendo o charuto, quando se voltou, a viu pelas costas. Ficou tão perturbado, tão trêmulo, que em lugar de correr a segui-la, a vê-la, como o seu desejo reclamava furiosamente, recolheu-se para o fundo da loja, esteve ali a hesitar, a sentir bater o coração, com o ar pálido e estúpido. De repente quis vê-la ainda uma vez, mas debalde subiu, desceu o Chiado, não a encontrou; tinha-a perdido, e foi para casa com uma saudade imensa, tendo diante dos olhos toda a noite a figura alta, vestida de preto, com uma flor amarela no chapéu.

 

O encanto porém quebrara-se, e uma semana depois, ia descendo a Calçada do Correio, avistou-a que subia, com a irmã. Foi a mesma perturbação, o mesmo embaraça, a mesma idéia absurda de se esconder aos pulos, decidiu-se ao encontro: afirmou o passo, deu um leve puxão aos punhos, aprumou-se, marchou. E pelo canto do olho, tremendo todo, viu-a baixar os olhos e corar, perturbada também.

 

Foi para casa num extraordinário estado de exaltação. Sentia que a adorava, e o coração desfalecia-lhe à idéia deliciosa de a apertar outra vez nos braços. E ao mesmo tempo era um ciúme furioso e vago, ciúme dos outros homens, da rua, dos passos que ela dava, das palavras que poderia dizer a outros, dos olhares que poderia dar a outros. Queria-a para si, ali, debaixo de chave, entre aquelas paredes que eram suas, na prisão dos seus braços. E não pôde parar, em casa, saiu era quase meia-noite, foi olhar as janelas do Neto. Depois voltou, escreveu-lhe uma carta absurda, seis páginas de paixão a que se misturavam ainda acusações. Rasgou-a, ao relê-la, achando-lhe muitas palavras e insuficientemente amorosa. Não dormiu nessa noite. Via constantemente a sua bela face corar, as pálpebras baixarem-se-lhe. E estava como disse o Neto, mais cheia, mais bela. Oh, que mulher divina! E era sua, a sua mulher! Positivamente aquilo não poderia durar, aquela vida infeliz e solitária!

 

Todo o janeiro passou sem ele a tornar a ver – e a sua paixão crescia. Agora esperava um acaso que os ligasse; cada manhã imaginava que o dia não se passaria sem ele a ver, e estava decidido a falar-lhe. Uma vez já encontrando o Neto, falara vagamente nos inconvenientes daquela separação. O Neto encolhera os ombros, com um ar de melancolia e de dor paternal. Era bem triste, mas que se havia de fazer? Depois, uma noite no Murtinho tornou a falar-lhe. E o Neto disse que refletira, e que estava decidido a ir fazer com a filha uma viajata até o Minho, para evitar falatórios. Godofredo ficou assombrado, não se conteve:

 

         Mas não há-de ser à minha custa.

 

E voltou-lhe as costas, veio para casa furioso. Eram sete horas da noite, e havia um luar claro e frio. Ele chegava à sua porta, quando deu de rosto no passeio com Ludovina, que recolhia, acompanhada pela irmã. Instintivamente, desceu vivamente do passeio, afastou-se; mas logo voltou, com uma inspiração, apressou, chamou:

 

-Ludovina!

 

Ela parara, voltou-se, espantada. Estavam junto duma loja de mercearia, na luz do gás, e ficaram um defronte do outro, sem achar uma palavra, enleados, com todo o sangue nas faces. Godofredo estava tão perturbado que nem cumprimentou a cunhada, nem sequer a viu. E as suas primeiras palavras foram absurdas.

 

         Então diz que vais para o Minho?

 

E ele, numa voz atrapalhada:

 

Ludovina olhou-o espantada, depois olhou para a irmã.

 

         Para o Minho? – murmurou.

 

E ele, numa voz atrapalhada:

 

Disse-me teu pai... Eu achei que era a coisa mais ridícula!... Oh, Teresinha, desculpe, que a não tinha visto... Tem passado Bem? E então tu, Ludovina, tens passado bem?

 

Ela encolheu os ombros:

 

         Assim, assim...

 

Ele devorava-a com os olhos, achando-a adorável, naquela capa de veludo que ele lhe não conhecia, e que devia ser nova.

 

         Diz que te divertisse muito.

 

Ela teve um sorriso amargo:

 

         Eu? Boa... – E acrescentou com um vago suspiro: - O que me tenho é aborrecido e chorado.

 

Um amor, uma piedade imensa invadiu-o E com a voz trêmula, quase chorando:

 

         Ora essa, ora essa...

 

Depois, acrescentou ao acaso, já num tom de intimidade, como se desde esse momento a reconciliação estivesse feita:

 

Pois aquilo lá em casa não vai bem... A Margarida tem-se desleixado muito. E é verdade, que te queria perguntar... Como diabo se acende o candeeiro de escrever, que não tem sido possível pô-lo em ordem?

 

Era riu, Teresa também. Ela tinha percebido bem, de ora em diante era outra vez a mulher de Godofredo. Disse:

 

         Se queres eu lá vou ensinar a Margarida a arranjar isso.

 

Todo ele foi um grito de alegria:

 

         Pois vem, pois vem! A Teresinha pode vir também. É um instante.

 

E subiu adiante, galgou a escada, abriu a porta, desfalecendo de voluptuosidade ao ouvir o rumor das sais dela pela escada acima. Ouvindo vozes, Margarida tinha corrido, e ao avistar as senhoras ficou embatucada.

 

Traga cá esse candeeiro de escrever... – gritava atarantadamente Godofredo.

 

Ludovina e a airmã tinham penetrado na sala de jantar e conservavam-se de pé, de chapéu, com as mãos nos regalos. Godofredo, no entanto, como parvo, correra à cozinha, depois entrara no quarto, depois precipitara-se a acender as luzes da sala das visitas, onde não havia gás. Ludovina no entanto olhava a sala de jantar, o aparador, escandalizada já daquele desleixo que ali se sentia – parando a contemplar indignada uma linda fruteira de cristal que tinha uma asa quebrada.

 

Godofredo veio encontrá-la assim.

 

Ai, isso vai aí uma destruição que nem tu imaginas. Olha, vem cá dentro, vem ver, vem cá ao nosso quarto.

 

Ele mesmo entrou, ela teve um rubor de virgem que penetra na câmara nupcial; e, apenas entrou, ele apoderou-se dela, arrastou-a para a alcova do lavatório, e ali no escuro, violentamente, freneticamente, beijou-a pelos olhos, pelo cabelo, pelo chapéu, fartando-se da doçura que ela trazia do frio da rua.

 

Ela disse baixo:

 

         Não, não, olha a Teresa!

 

Manda-a embora, eu vou levá-la – murmurou ele. – Tu ficas, amor, nunca mais nos separam.

 

Ela consentiu, num beijo.

 

 

 

 

 

 

 

IX

 

 

 

NO DIA SEGUINTE, num momento de enternecimento, querendo dar à sua felicidade um meio mais poético – e como o tempo estava adorável -, Godofredo propôs o irem estar uns dias a Sintra. E aí foi uma lua-de-mel. Estavam na Lawrence ,  tinham um pequeno salão para eles sós; levantavam-se tarde, Godofredo quis champagne ao jantar, e beijavam-se às escondidas debaixo das árvores. E Godofredo não a deixava um instante, ávido de gozar de novo aquela intimidade, que ele julgava  perdida, sentindo um prazer infinito em a ver apertar o colete, encontrar um chambre dela sobre uma cadeira, ou assistir-lhe ao penteado.

 

Ao fim de quatro dias voltaram; e esta lua-de-mel prolongou-se ainda em Lisboa, cheia e larga, sem considerações pôr despesas, com carruagem da companhia, e camarote em São Carlos. Godofredo queria mostrar-se pôr toda a parte com ela, para tapar as bocas do mundo. Em São Carlos mesmo tomava sempre uma frisa, bem em evidência, fazendo exposição da sua felicidade doméstica. E como Ludovina, com os ares da Ericeira, voltara mais forte, mais cheia, magnífica na sua forte beleza de trigueirona forte, os homens na platéia olhavam-na muito; havia sempre algum binóculo fixo sobre ela.

 

Lá estão a olhar – dizia Godofredo. – Estão pasmados de nos ver juntos... Pois é para que saibam.

 

E à frente do camarote puxava devagar os punhos, sorria à sua Lulu.

 

Numa dessas noites dava-se a Africana, pela primeira vez. E Ludovina, que durante toda a representação estivera torturada com um par de botinas novas, quis sair no meio do quinto ato; e ele cedeu logo, apesar do prazer que lhe davam os  gorgeios patéticos da Alteroni, sob as ramagens das mancenilheiras, à luz trágica da lua cheia. Agasalhou-a, deu-lhe o braço: - e no peristilo, a um canto, esperavam que se aproximasse a carruagem da companhia, quando, de repente, apareceu o Machado, de charuto na boca, enfiando o paletot. Ele decerto não os viu porque continuou, através do peristilo, assobiando, com o seu ar um pouco gingado, de gravata branca, acabando de abotoar o paletot . Mas de repente deu com eles!  Um momento pareceu hesitar, ficou enleado, pálido, com os dedos esquecidos nos botões. Depois decidiu-se, tirou profundamente o chapéu. De dentro da gola branca da saída de baile, ela fez um ligeiro movimento de cabeça, baixou os olhos, séria, impassível, imóvel, com a sua grande cauda azul apanhada na mão. E Godofredo, depois de hesitar também um instante, terminou pôr dizer alto um olá Machado, boa noite! Machado saíra vivamente, para fora.

 

No dia seguinte, quando Godofredo entrou no escritório, Machado já estava à sua carteira. Depois dos cumprimentos secos e usuais, Godofredo esteve um momento remexendo os papéis, lendo a correspondência; depois deu um olhar vago e distraído ao jornal; evidentemente estava preocupado, com o pensamento noutra coisa; e de repente recostou-se, fez estalar os dedos, perguntou ao Machado:

 

Então ontem que tal lhe pareceu a Alteroni?

 

Era a primeira vez que lhe dirigia uma palavra – estranha aos negócios da firma! Machado ergueu-se um pouco nervoso para responder:

 

         Gostei muito... E você?... Boa voz, hein?

 

E estas banais palavras, apenas soltas, foram como portas dum dique que se abre. Godofredo erguera-se também – e foi um fluxo de palavras, dum e doutro, ao princípio hesitantes, depois tomando calor, aproximando-os um do outro, formando uma viva corrente de simpatia. Era como dois amigos que se encontram depois duma ausência; e cada um reconhecia no outro aquilo que nele sempre estimara: com um trivial gracejo do Machado sobre o tenor, Godofredo ia rebentando a rir – e uma observação de Godofredo sobre o uníssono das rabecas interessou imensamente o outro, fê-lo pensar que o Godofredo era realmente um grande entendedor de música. Depois Godofredo falou da estada em Sintra. E um momento conversaram sobre Sintra, dizendo cada um os sítios que lá preferia, a impressão que eles lhe davam – como se depois daquela longa separação sentissem a necessidade de conferirem as suas idéias e os seus gostos respectivos. Depois, como Machado tinha de sair mais cedo – o shake-hands que deram à despedida foi profundo, ardente, duma reconciliação completa, unindo-os outra vez e para sempre.

 

Então, outra vez, a vida de Godofredo foi calma e feliz. Na casa da rua de São Bento entrara de novo a ordem e a alegria; os ovos ao almoço já não apareciam crus ou duros; já à noite o Souvenir d'Andalousie dava a Godofredo aquele não sei quê dos vergéis de Granada, e a todo o momento a voz dela, o frou-frou dos vestidos dela banhavam de alegria o seu coração. E o inverno tinha assim passado, passava a primavera, estava-se nos primeiros calores de março quando, uma manhã, ao sair, ao passar no corredor, avistou entre portas a Margarida que dava sub-repticiamente, e em segundo, uma carta à senhora. Foi como um rochedo que lhe arremessassem contra o peito. Mal atinava com o fecho da porta; imaginou logo outro homem, outro amante, e a sua felicidade, aquela felicidade tão laboriosamente reconstruída, de novo rachada pôr todos os laços. Sentiu um terror, como se se visse vítima dum fado, dum fado terrível e bestial, da fatal incontinência da fêmea. Pensou que seria outra vez o Machado; e passou-lhe nos olhos uma onda de sangue, pensou que desta vez não haveria nem conferências, nem consultas, nem testemunhas, mas que entraria no escritório, e lhe meteria à queima-roupa uma bala no coração.

 

E sentiu-se tão agitado que não supôs poder tolerar o aspecto do Machado; não foi ao escritório, vagueou pela Baixa, tendo sempre diante dos olhos a mão da criada, o papelinho branco, o ar embaraçado da Ludovina. Entrou em casa, sombrio e taciturno. E não podia estar quieto , ia duma sala a outra, atirava com as portas, com o ar dum homem que sufocava, sentindo em volta de si o ar carregado de engano e de traição; Ludovina espantada terminou pôr lhe perguntar o que tinha ele.

 

Nervos – respondeu com mau modo.

 

E daí a momentos, cedendo a um impulso furioso, voltou-se para ela, declarou que estava farto de mistérios, que aquela vida era um inferno, e que queria saber que papel era o que lhe tinha dado a Margarida.

 

Ela olhou-o, pasmada daquela violência, daquela voz estridente, levando instintivamente a mão ao bolso do robe de chambre.

 

Ele seguira-lhe o movimento:

 

         Ah, tens aí a carta! Deixa ver...

 

Ela então mostrou-se ofendida com aquela desconfiança. Recomeçavam outra vez as suspeitas, as questões? O que, não podia ela receber um papel sem ele querer meter o nariz!

 

Ele, pálido, com os punhos fechados, gritou:

 

         Ou me dás a carta, ou te racho!

 

Ela fez-se pálida, chamou-lhe malcriado, caiu para o sofá a chorar, com as mãos no rosto.

 

Dá-me a carta! – gritava ele em bicos de pés. – Dá-me a carta! E desta vez não há-de ser como da outra vez. Vais para um convento, mato-te!

 

E não esperou a resposta, arremessou-se sobre ela, torceu-lhe o braço, rasgou a algibeira do robe de chambre, apoderou-se da carta. Mas não podia perceber a letra: era uma garatuja, sem ortografia, num pedaço de papel pautado. Começava minha querida senhora; vinha assinada Maria do Carmo, e falava-se lá de esmola, do pequenito que estava melhor do sarampo e de orações que não deixariam de se rezar pôr aquela boa esmola.

 

Trêmulo, murcho, humilhado, com o papel na mão, ele veio sentar-se ao lado de Ludovina que chorava entre as mãos, e passando-lhe o braço pela cintura, balbuciou:

 

         Está bem, vejo que não é nada, desculpa, dize lá o que é.

 

Ela repeliu-o, pôs-se de pé, toda ofendida. Estava satisfeito? Tinha lido a carta, hein? Era dum homem, não era?...

 

Ele balbuciou, envergonhado:

 

         Mas também todos esses mistérios...

 

E como ela, bela e de pé, limpava os olhos engolindo os soluços, ele não se conteve, teve necessidade do seu perdão, pôs-se de joelhos, e com as mãos postas, murmurou:

 

         Perdoa, Luluzinha, foi tolice minha...

 

Com um outro soluço ainda maior, ela bateu-lhe com a ponta dos dedos na face...

 

E ele então quase chorou também, beijou-lhe as mãos, abraçou-lhe os joelhos, terminou pôr se erguer agarrado às saias dela, encheu-lhe o pescoço de beijos. E ainda na comoção dos dois, entre abraços, ela contou-lhe a história das esmolas secretas que fazia a uma pobre rapariga que conhecera na Ericeira, que um patife seduzira e abandonara com dois filhos, um ainda de mama...

 

Mas para que fizeste mistério, meu amor? – continuava ele, comovido e apaixonado.

 

Ela então confessou que já lhe dera mais de cinco mil réis, - e tinha que ele achasse extravagância...

 

E a alegria que ele sentia era tão viva que exclamou:

 

         Qual extravagância! Dá-lhe outros cinco... É pôr minha intenção:

 

Tudo terminou num beijo.

 

E então Godofredo sentiu-se envergonhado da sua cólera dessa manhã contra o Machado. Lá  pensara outra vez em matar o Machado! E agora sentia a necessidade de o rever, apertar-lhe profundamente a mão – sentindo nesse instante pôr ele uma amizade maior, não sei que reconhecimento vago que o enternecia.

 

Mas no outro dia, quando entrou no escritório, não se conteve, sem motivo abraçou pela conta o Machado. E o outro correspondeu ao abraço, sem estranhar esta efusão, mas com um modo, um ar de enternecimento, um abandono triste que surpreendeu Alves, e a sua surpresa foi maior quando viu que Machado tinha os olhos vermelhos, como se tivesse chorado.

 

         É minha mãe que está muito mal – disse o Machado, respondendo à interrogação do seu sócio.

 

E Alves, com a sua alegria cortada pôr aquela dor, só pôde murmurar:

 

Diabo!

 

Era o diabo, era! E o médico não dava esperança. A pobre senhora sofria duma complicação de doenças de fígado, de bexiga, de coração, que pareciam resolver-se agora, num desarranjo total da vida. Na véspera tinha tido um desmaio de duas horas. Ele julgara-a morta: e nessa manhã tinha um alívio, extraordinário, de que ele desconfiava.  E o pobre Machado suspirava dizendo isto. O amor da mãe fora até aí o seu sentimento mais vivo: eles tinham vivido ambos, sempre juntos; pôr causa dela ele nunca quisera casar, e agora aquela perda parecia tirar da sua vida tudo o que lha tornava cara...

 

         Deus não há-de querer uma desgraça – murmurou Godofredo comovido...

 

O Machado encolheu os ombros, e daí a instantes saiu, para voltar para junto da sua pobre doente.

 

Todos os dias então,  três, quatro vezes, Godofredo ia à casa de  Machado saber notícias. A pobre senhora piorava: felizmente não sofria, e os seus últimos instantes eram consolados pôr aquele amor em que o filho a envolvia, não se arredando um instante do leito dela, recalcando a dor, escondendo a palidez, animando-a, falando de planos e de idas para o campo, e gracejando como nos bons tempos. Depois uma tarde Godofredo chegou a saber notícias. A criada apareceu com o avental nos olhos. A senhora morrera havia uma hora, como um passarinho. Ele entrou, Machado caiu-lhe nos braços, perdido de choro.

 

Godofredo não o deixou mais, Passou essa noite com ele: ocupou-se do enterro, dos convites, da compra dun terreno no Alto de São João. E ao outro dia, na solenidade dos pêsames, os amigos da casa davam-lhe a ele apertos de mão, tão sentidos e tão mudos, como ao próprio Machado – reconhecendo, nele, mais que um irmão de Machado, quase um pai.

 

O enterro foi concorrido; havia vinte carruagens; Godofredo levava a chave do caixão, e no cemitério dirigiu tudo, convidou os amigos mais íntimos para as borlas do esquife, cochichou com os padres, prodigalizou-se, e, quando o caixão desceu à cova, as únicas lágrimas que houveram foram as dele.

 

No dia seguinte Machado partiu para Vila Franca para casa duma tia; e Godofredo foi levá-lo à estação, ocupou-se da sua bagagem, chorou outra vez ao abraçá-lo.

 

Passados quinze dias Machado voltou, ocupou outra vez a sua carteira no gabinete de reps verde. Mas não parecia o mesmo. Estava mais sereno, sim, mas tão triste no seu luto, que Godofredo, sempre romântico, pensou de si para si que aqueles lábios nunca mais sorririam.

 

Depois, vendo-o demorar-se à carteira, sem vontade de ir para casa – para casa agora vazia, para o jantar solitário -, veio-lhe um dos seus bruscos impulsos de bondade, esqueceu tudo, abriu os braços ao Machado:

 

         O que lá vai! Venha você daí jantar conosco!

 

E nem o deixou hesitar, quase lhe enfiou o , paletot, arrastou-o pela escada abaixo, chamou uma tipóia, atirou-o para dentro, levou-o em triunfo à rua de São Bento. Machado todo o caminho não disse nada, tremendo àquele encontro, palidecendo já, procurando uma palavra natural para lhe dizer... Logo na escada sentiram o som do piano, e daí a instantes Godofredo, metendo a cabeça através do reposteiro da sala, exclamava radiante:

 

         Ludovina, trago-te aqui um convidado.

 

Ela erguera-se, e achou-se diante do Machado, que se curvava profundamente, disfarçando a sua perturbação na profundidade daquela cortesia. Ela fizera-se escarlate – mas a sua voz foi clara e firme, quando lhe estendeu a mão, dizendo:

 

         Como está, sr. Machado? Então chegou bem?

 

Ele balbuciou umas palavras, e ficou de pé, esfregando as mãos, devagar – enquanto Ludovina dissipava aquele embaraço, com uma infinidade de palavras, contando a Godofredo uma infinidade de palavras, contando a Godofredo uma visita duns certos Mendonça, e falando do Mendonça, e do Mendonça pequeno, vivamente, nervosa e com as orelhas a arder.

 

Depois, para dar as suas ordens, apressou-se a sair.

 

Quando ficaram sós, Godofredo teve esta palavra profunda:

 

         Isto, quando há boa educação, tudo se vem a acabar bem!

 

Daí a pouco ela voltou, mais serena, tendo decerto posto na face uma camada de pó-de-arroz. Machado sentara-se no famoso sofá amarelo, e quis-se erguer, dar-lhe esse lugar. Mas ela não consentiu, sentou-se ao lado, na poltrona amarela, e, como se quisesse emendar um esquecimento, apressou-se a dizer dum fôlego, como um recado:

 

         Eu senti muito a perda que o sr. Machado...

 

Ele curvava-se, murmurando uma palavra.

 

E Godofredo acudiu, exclamando:

 

Nisso não se fala agora! Devem-se aceitar os decretos de Deus, acabou-se.

 

Mas uma senhora passara sobre a face comovida de Machado, e um bafo morno de tristeza pesou na sala. E foi esta tristeza que, subitamente, os pôs à vontade. Era como se o Machado, com aquele luto pesado, aquela saudade da mãe, aquele túmulo ainda recente, não fosse o mesmo que ali bebera copos de vinho do Porto, com ela nos braços, sobre o sofá amarelo; mas um outro Machado, um rapaz grave, com uma dor que era necessário consolar, envelhecido, e para sempre incompatível com coisas de amor. Ela achava-o mudado, e olhando-o não se recordava de como ele era noutros tempos; ele também a achava tão estranha, como se fosse a primeira vez que viesse àquela casa. O marido esquecia, eles esqueciam ambos também. E terminaram pôr se olhar, falar, naturalmente, sem embaraço, ela dizendo "sr. Machado", ele respondendo "vossa excelência" frios, tendo para sempre acabado de estremecer um defronte do outro, como dois carvões apagados.

 

E o jantar foi tranqüilo, calmo, íntimo, quase alegre.

 

Então a vida continuou, desenrolando-se, banal e corredia como ela é. O luto de Machado acabou, ele voltou aos teatros, teve outras vezes raparigas espanholas e namorou senhoras. Depois o Neto morreu, de repente, de apoplexia, dentro dum omnibus: e a Teresinha veio viver com a irmã. Ao fim de dois anos Machado casou, com uma menina Cantanhede, pôr quem ele concebera uma paixão absurda, frenética, que não podia esperar, o fez concluir namoro, enxoval, licenças e casamento, tudo dentro dum mês.

 

Houve um baile. Ludovina apareceu com uma bela toilette, mas dançou pouco, porque houvera um engano nos sapatos – e os que tinha nos pés torturavam-na a ponto que esteve para desmaiar.

 

Depois ao fim dum ano a pobre Cantanhede morreu de parto – e outra vez Machado soluçou perdido de choro nos braços de Godofredo; outra vez Godofredo recebeu a chave do caixão, deu apertos de mão profundos e mudos, na noite de pêsames. Mas desta vez Ludovina ajudava-o, Ludovina chorando também, porque ela e a pobre Cantanhede eram íntimas, não se deixavam, passavam o seu dia a beijar-se. E a dor de Ludovina foi tão grande quase como a do Machado.

 

Depois a vida continuou banal e corredia como ela é. Ao fim de dois anos Machado tinha pôr amante uma atriz do Ginásio. E  pôr esse tempo houve em casa do Alves um desgosto – o casamento de Teresa, feito contra vontade da irmã e do cunhado, com um empregado da alfândega, um imbecil, um tacanho, sem vintém, sem cabeça, que seduzira a menina pôr ser louro como uma espiga. E foi necessário casá-la porque se definhava, ameaçava de se deitar da janela abaixo, e havia outras desconfianças. Foi necessário casá-la.

 

E os meses passaram, depois os anos. A firma Alves e Cia. Crescia, enriquecia. O escritório, agora mais largo, mais rico, com seis caixeiros, era à esquina da rua da Prata. Godofredo estava mais calvo, Ludovina engordara: tinham carruagem; e no verão iam para Sintra. Depois Machado casou outra vez, com uma viúva, casamento inexplicável porque nem era bonita, nem rica; tinha apenas uns olhos extraordinários, muito negros, muito pestanudos, muito quebrados, a expirar de langor.

 

Foi um casamento à capucha – e os noivos partiram para Paris. Voltaram, vieram viver para o pé dos Alves, que agora tinham mudado para um palacete a Buenos Aires. E uma outra grande amizade nasceu logo entre a Ludovina e a senhora dos olhos langorosos: bem depressa Ludovina se tornou a escrava desta curiosa criatura que escravizava também o marido, tinha uma influência absoluta em Godofredo, dominava tudo em redor de si, criados, relações, fornecedores, sem nenhum esforço, sem qualidade nenhuma superior, só com a sua figurinha roliça e os seus olhos pestanudos que expiravam de langor.

 

Agora as duas famílias vivem junto uma da outra – e ao lado uma da outra vão envelhecendo. No dia dos anos de Ludovina há sempre um grande baile – e, sempre inseparável deste dia, vem à memória de Alves aquele outro dia de anos, em que ele entrou em casa, e viu no sofá amarelo... Mas há quanto tempo isso vai. E esta lembrança agora só faz sorrir. E fá-lo também pensar – porque este fato permanece como o grande acontecimento da sua vida e dele extrai geralmente a sua filosofia e as suas reflexões usuais. Como ele diz  muitas vezes ao Machado – que coisas prudente é a prudência! Se naquele dia do sofá amarelo ele se tivesse abandonado ao seu furor, ou se tivesse persistido depois em idéias de vingança e rancor, qual  teria sido a sua vida? Estaria agora ainda separado de sua mulher, teria quebrado a sua amizade íntima e comercial com o seu sócio, a sua firma não teria prosperado, nem a sua fortuna aumentado; e o seu interior teria sido o dum solteirão azedado, dependente de criadas, maculado talvez pela libertinagem. Nesses longos vinte anos que tinham passado, quantas coisas belas teria perdido, quantos regalos domésticos, quantos confortos, quantos doces serões de família, quantas satisfações da amizade, quantos longos dias de paz e de honra! A estas horas estaria velho, azedado, com a vida estragada, a saúde arruinada, e aquela vergonha do seu passado queimando-o sempre!

 

E assim, que diferença!

 

Tinha estendido os braços à esposa culpada, ao amigo desleal, e, com este simples abraço, tornara para sempre a sua esposa um modelo, o seu amigo um coração irmão e fiel. E agora ali estavam todos juntos, lado a lado, honrados, serenos, ricos, felizes, envelhecendo de camaradagem no meio da riqueza e da paz.

 

Às vezes, pensando nisto, Alves não pode deixar de sorrir de satisfação. Bate então no ombro do seu amigo, lembra-lhe o passado, diz-lhe:

 

         E nós que estivemos para nos bater, Machado! A gente em novo sempre é muito imprudente... E pôr causa duma tolice, amigo Machado!

 

E o outro bate-lhe no ombro também, responde sorrindo:

 

         Pôr causa duma grande tolice, Alves amigo.

 

 


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