Artur Azevedo- Livros completos
"A jóia"
DRAMA EM TRÊS ATOS
Em versos
PERSONAGENS
Valentina
Joaquim Carvalho
João de Souza
Gustavo
Um Joalheiro
Um Sujeito
Rio de Janeiro, 1874
ATO PRIMEIRO
Sala de visitas em casa de Valentina. Duas portas de cada lado e duas janelas de sacada ao fundo. À esquerda do espectador, sofá; ao lado deste, poltrona. À direita, escrivaninha, com preparos para escrever. Cadeiras, consolos com porta-jóias, estatuetas, quinquilharias, etc. Nos intervalos das portas, gravuras ricamente emolduradas. Reposteiros de lã em todas as portas e cortinas de rendas às janelas. Piano. Tapete. Lustre de gás. É dia.
Cena I
Valentina, Um Sujeito
(Valentina está sentada na poltrona, de penteador branco. O sujeito de pé, pronto para sair, de chapéu na cabeça, tem uma das mãos entre as dela.)
VALENTINA — Adeus. De mim não se esqueça
Nem do número da porta.
O SUJEITO — Não.
VALENTINA — Se, de saudades morta
Me não quer ver, apareça.
O SUJEITO (Aborrecido.) — Adeus.
VALENTINA — Adeus. (Ele vai saindo.) Até quando?
O SUJEITO (Parando.) — Prometo voltar bem cedo.
VALENTINA — Não minta.
O SUJEITO — Não tenhas medo!
Pois eu vivo em ti pensando. (Sai.)
Cena II
Valentina, só
[VALENTINA] — Pensando em mim!... Na verdade,
o tempo emprega bem mal,
(Abrindo o envelope que o sujeito lhe tem deixado nas mãos.)
Sim senhor, foi liberal.
Quanta generosidade!...
(Erguendo-se, e como que dirigindo-se ao sujeito que acaba de sair.)
Bem! cá fica arquivado
no livro dos preciosos... (Tirando três cédulas do envelope.)
Que três bilhetes formosos!
Fazem-lhe falta... Coitado...
Sei de dois credores seus
que a porta não lhe abandonam,
e sei também que tencionam
mandar citá-lo... (Outro tom.) Ora, adeus!
Deixemos estas lembranças...
Fechemos a porta à chave...
(Vai fechar a porta da esquerda, segundo plano, e voltando à cena, vai abrir uma das gavetas da secretária.)
E, nesta solidão suave,
vamos tratar de finanças.
Esta semana rendeu!
A receita, com certeza,
cento por cento a despesa
nestes dias excedeu.
(Senta-se à secretária, donde tira um monte de notas de banco, que põe-se a contar.)
Dez, vinte, trinta, quarenta,
cento e quarenta, duzentos,
trezentos, e quatrocentos,
quinhentos e cinqüenta,
seiscentos... — Que nota antiga!
Não estará recolhida? (Guarda pressurosa o dinheiro, por ouvir bater à porta.)
Quem está aí?
GUSTAVO (Fora.) — Sou eu, querida!
VALENTINA (Erguendo-se.) — Gustavo?
GUSTAVO (Fora.) — Sim, minha amiga.
(Valentina vai abrir a porta a Gustavo, que entra.)
Cena III
Valentina, Gustavo
VALENTINA (Apertando-lhe a mão)
— Não te esperava já, palavra de honra!
GUSTAVO — Já?
Querias que eu ficasse eternamente lá?
VALENTINA — Deste-te bem?
GUSTAVO — Então? Não vês como estou nédio?
Para o blazé não há mais eficaz remédio
do que passar um mês de vida regular
onde os prazeres são difíceis de encontrar.
O físico e o moral a roça purifica:
tens precisão também da roça, minha rica.
(Repoltreando-se na poltrona.)
Dize-me cá: tem vindo o deputado?
VALENTINA (Encostando-se ao espaldar da poltrona.)— Tem.
GUSTAVO — O João Ramos?
VALENTINA — E o Pimenta?
VALENTINA — Também.
GUSTAVO — Que bons amigos tens! Sou eu que tos arranjo!
Em consideração deves tomar, meu anjo...
VALENTINA (Descendo à cena.)
— Pois queres mais dinheiro?! És exigente.
GUSTAVO — Sou;
mas vê lá também a roda que te dou!
VALENTINA (Sentando-se à direita.)
— Não trouxeste o melhor dos que aqui vêm agora.
GUSTAVO — Quem é? Não é segredo?
VALENTINA — Um tipo que me adora!
Um fazendeiro rico e velho que supõe
ser ele só que os pés em minha casa põe.
GUSTAVO (Com interesse.)
— E onde foste encontrar esse tesouro raro?
VALENTINA — No Prado Fluminense. Eu vi-o, deu-me o faro,
sorri-lhe, ele sorriu-me... Eu dei-lhe o meu cartão..
Veio. Adora-me e... crê que tenho coração.
GUSTAVO — Um fazendeiro é mina; e quanto mais se explora,
mais ouro dá!... Pois bem, caríssima senhora,
- não é por me gabar - acredito que o seu
é muito bom, mas tenho um ótimo!
VALENTINA — Tu?
GUSTAVO — Eu.
VALENTINA (Erguendo-se.) — Onde ele está?
GUSTAVO (Idem.) — Depois... depois nós falaremos...
VALENTINA — Mas que custa dizer?
GUSTAVO — Tempo de sobra temos.
VALENTINA — Mas dize-me...
GUSTAVO — Não posso agora; logo mais
voltarei.
VALENTINA —‘Stás com pressa?
GUSTAVO — Estou.
VALENTINA — Aonde vais?
GUSTAVO — Subi só por te ver. Espera-me um amigo
que convidado está para almoçar comigo.
VALENTINA — Bem; vai e volta.
GUSTAVO — Dá-me uns cinqüenta mil-réis.
VALENTINA (Vai à secretária e conta o dinheiro.)
— Com muito gosto. É já... Dois, quatro, cinco, seis...
Dez e dez vinte, e trinta... Ah! Cinqüenta... Pega!
(Dá o dinheiro a Gustavo que o guarda.)
GUSTAVO — Obrigado. Até logo! (Sai por onde entrou.)
VALENTINA — Adeus. (Só.) Supõe-me cega...
Com tal balela quis uns cobres me apanhar!
(Fechando a porta.) Enfim... Vamos a ver... Bem posso me enganar.
Cena IV
Valentina , só
(Senta-se de novo à secretária, abre-a e recomeça a contar dinheiro.)
[VALENTINA] — Terminemos esta conta...
Três contos... quatro e quinhentos...
e seiscentos... setecentos...
Quase a cinco contos monta
desta semana a receita!
Vamos conferir... (Toma a pena.) O Ramos
deu-me na quarta... - Escrevamos -
oitocentos de uma feita...
(Escrevendo.) “Oitocentos”. (Pensa.) O Pimenta
aquele broche me deu
que há três dia me rendeu
trezentos e cinqüenta...
Entregou-me o deputado
todo o subsídio. Que bolo!...
É justo: um fútil, um tolo,
que só diz “muito apoiado”
e ganha um conto e quinhentos. (Escreve.)
Deu-me no dia seguinte
Mais quatro notas de vinte...
O Sá tem dado trezentos...
O fazendeiro... (Batem à porta.) Quem é?
Já lá vou!
(Guardando o dinheiro que estava espalhado.)
Deve estar certo...
Levo isto ao Banco, que é perto,
daqui a pouco. (Batem de novo.) Olé! Olé!
Com que pressa está!
O JOALHEIRO (Fora.) — Estou!
Não se acha em casa a senhora?
VALENTINA — Se quer, espere!
O JOALHEIRO (Fora.) — A demora
é pequenina.
VALENTINA — Lá vou.
(Vai abrir a porta: entra o joalheiro com uma caixa de jóias na mão.)
Cena V
Valentina, O Joalheiro
VALENTINA — Ah! é o senhor!
O JOALHEIRO (Abrindo a caixa, deixa ver um formoso par de bichas de brilhantes.)
— Ora veja!
VALENTINA — Vem aqui tentar-me, aposto!
O JOALHEIRO — Não tentei nunca, nem gosto
de tentar quem quer que seja.
(Entregando a jóia a Valentina que a examina.)
Venho mostrar-lhes uns brilhantes
como os Farâni não os tem;
Se os quer comprar, muito bem!
Se os não quer, passo adiante.
Não tento... não sei tentar...
Apenas lhos ofereço...
Nem sequer os encareço...
Isto é pegar, ou largar!
Veja bem que são granditos!
Sem jaça... veja... sem jaça...
Examine... veja... faça
O que quiser.
VALENTINA — São bonitos!
O JOALHEIRO — ‘Stou a vendê-los disposto:
se lhos vim mostrar agora,
é porque sei que a senhora
pode comprar, e tem gosto.
Não tento... tentar não vim...
VALENTINA (Fechando ao caixa.) — E baratinho mos vende?
O JOALHEIRO — Ora, a senhora compreende
que dois brilhantes assim...
de dez quilates!... É boa!
VALENTINA (Abrindo de novo a caixa.) — Dez quilates?
O JOALHEIRO — Está visto!
VALENTINA — Porém quanto valem?
O JOALHEIRO — Isto
não são brilhantes à toa!
VALENTINA — Bem vejo! Que tentação!
(Vai ao espelho e chega uma das bichas à orelha.)
O JOALHEIRO — Não são jóias de mascates,
brilhantes de dez quilates...
sem jaça... como estes são!...
VALENTINA — Mas o preço?
O JOALHEIRO — Ora, avalie...
A senhora os tem comprado...
VALENTINA (Descendo.) — Quatro contos!
O JOALHEIRO (Tomando a jóia.) — Obrigado!
Por favor não calunie
os meus brilhantes! (Mostrando-lhos.)Repare!
Cravados em dois anéis,
davam dez contos de réis!
Ambas as pedras compare:
são iguais... não vale a pena
separar...(Fecha a caixa.) Dou-lhe os marrecos...
VALENTINA — Por quanto?
O JOALHEIRO — Por seis contecos.
A diferença é pequena...
VALENTINA — Não tenho dinheiro agora;
leve os brilhantes. Adeus! (Vai sentar-se à direita.)
O JOALHEIRO — Ora por amor de Deus!
Que não mos pague a senhora,
mas algum...
Cena VI
Valentina, O Joalheiro, Joaquim Carvalho
(Joaquim Carvalho entra pela esquerda, segundo plano, sem reparar no joalheiro que, de costas voltadas para ele, limpa as bichas com o lenço.)
CARVALHO — Cá vou entrando.
(Tomando as mãos ambas de Valentina.)
Como estás?
VALENTINA — Bem, obrigada.
Mas de saudades ralada...
e você nem se lembrando
talvez que existo!
CARVALHO (Protestando.) — Ó minha...
(Vendo o joalheiro interrompe-se.)
Quem é aquele senhor?
VALENTINA — Um caixeiro.
CARVALHO — Manda-o pôr
a panos.
VALENTINA — Uma continha
vem receber, e não há
com que pagar...
CARVALHO — Não me espanta!
Gastas tanto, minha santa!
Queres dinheiro? (Tirando a carteira.) Aqui está.
Quanto lhe deves?
VALENTINA — Pouquito:
oitenta mil réis.
CARVALHO — É pouco. (Dando-lhe uma nota de cem mil réis.)
Paga, e fica tu com o troco,
enquanto eu leio o Mosquito.
(Senta-se à direita e lê um periódico de caricaturas que vai buscar sobre a secretária. Valentina dirige-se ao joalheiro.)
O JOALHEIRO (A meia voz.) —‘Stá terminado o negócio?
VALENTINA (Idem.) — Vá para casa, que em breve
alguém procurá-lo deve.
O JOALHEIRO — Se não estou eu, está meu sócio.
Se uma decisão dar pode...
VALENTINA — Irei eu mesma em pessoa
em meia hora!
O JOALHEIRO — Essa é boa!
Não quero que se incomode,
nem tenho mais pretendentes...
VALENTINA — Em meia hora lá estou.
O JOALHEIRO — Bem! bem! descansado vou.
VALENTINA — Até logo1 (O joalheiro sai por onde entrou.)
Cena VII
Valentina, Joaquim de Carvalho
CARVALHO (Deixando periódico.) — Impertinentes
são estes credores!
VALENTINA — São
por isso é que me coíbo
de dever muito;
CARVALHO — E o recibo?
Pediste-lho?
VALENTINA — E por que não?
(Aproximando-se de Carvalho e passando-lhe o braço em volta do pescoço.)
Por que não vieste esta noite?
Ai, que saudades eu tive!
Para a mísera que vive
de teu amor, fero açoite
é tua ausência! Sozinha
a noite inteira passei...
Lembrei-me tanto... Nem sei
mesmo por quê...
CARVALHO — Coitadinha!
VALENTINA (Sentando-se num tamborete, aos pés do Carvalho.)
— Porém. vamos lá saber:
e tu?... tu como passaste?
CARVALHO — Assim...
VALENTINA — De mim te lembraste?
CARVALHO — De ti me posso esquecer?
E tu?
VALENTINA — Muito despeitada...
CARVALHO — Por que, meu bem?
VALENTINA — Faze idéia:
desejar uma tetéia
e não poder... Que maçada!
CARVALHO — Não poder o quê?
VALENTINA — Comprá-la.
CARVALHO — Por que comprá-la não podes?
VALENTINA — Pois pensa que a dão de godes?
CARVALHO — Se é muito cara, deixá-la!
VALENTINA — É difícil esquecer!
CARVALHO — Dificuldades não vejo...
VALENTINA (Erguendo-se.) — Sufocar o meu desejo!
Matá-lo logo ao nascer!
Esquecer! Fora um suplício!
Pois desejar hei de em vão! (Batendo o pé.)
Oh! não! não!... Mil vezes não!...
CARVALHO (Erguendo-se.) — Mas eu não digo...
VALENTINA (Evitando-o.) — Outro ofício!
CARVALHO — Menina, não te exacerbes!
Se queres a tal tetéia,
não me faças cara feia,
que dentro em pouco a recebes!
(Tomando o chapéu que deixou na cadeira perto da secretária.)
Dize-me o que é que num salto,
vou buscá-la. Dize! o que é?...
VALENTINA (À parte.) — Parece estar de maré...
Preparemos este assalto!...
CARVALHO — Algum chapéu enfeitado
pras corridas de amanhã?
Algum vestido de lã?
VALENTINA (Com desprezo.) — Lã.
CARVALHO — Ou seda.
VALENTINA — ‘Stá enganado.
É um capricho.
CARVALHO (Deixando o chapéu.) — Ah! caprichas?
VALENTINA — Procure.
CARVALHO — É coisa que enfeita?
VALENTINA — É uma cosa que se deita
nas orelhas!
CARVALHO — Umas bichas?
VALENTINA — Tem talento: adivinhou!
(Senta-se no sofá.)
CARVALHO — Nas orelhas... Pois quem julga
não sejam bichas? (À parte.) Coa pulga
atrás das minhas estou.
De que são as bichas?
VALENTINA — Ora!
CARVALHO (À parte.) — Estes caprichos aleijam...
VALENTINA (Erguendo-se.) — Pois há bichas que não sejam
de brilhantes?
CARVALHO — Sim, senhora:
há bichas de coralina;
há de esmeralda, safira,
de pingos d’água...
VALENTINA — Mentira!
CARVALHO — Não me desmintas, menina!
Aos teus desejos conforme
‘stou, mesmo quando caprichas;
mas entre tetéias e bichas
há uma diferença enorme!
VALENTINA — Em quê?
CARVALHO — No preço: a tetéia
é sempre coisa miúda,
e as bichas, Deus nos acuda!
VALENTINA — Nem tanto assim!
CARVALHO — Faço idéia
que essas, que desejas tanto,
&#
Artur Azevedo- Livros completos
"A jóia"
DRAMA EM TRÊS ATOS
Em versos
PERSONAGENS
Valentina
Joaquim Carvalho
João de Souza
Gustavo
Um Joalheiro
Um Sujeito
Rio de Janeiro, 1874
ATO PRIMEIRO
Sala de visitas em casa de Valentina. Duas portas de cada lado e duas janelas de sacada ao fundo. À esquerda do espectador, sofá; ao lado deste, poltrona. À direita, escrivaninha, com preparos para escrever. Cadeiras, consolos com porta-jóias, estatuetas, quinquilharias, etc. Nos intervalos das portas, gravuras ricamente emolduradas. Reposteiros de lã em todas as portas e cortinas de rendas às janelas. Piano. Tapete. Lustre de gás. É dia.
Cena I
Valentina, Um Sujeito
(Valentina está sentada na poltrona, de penteador branco. O sujeito de pé, pronto para sair, de chapéu na cabeça, tem uma das mãos entre as dela.)
VALENTINA — Adeus. De mim não se esqueça
Nem do número da porta.
O SUJEITO — Não.
VALENTINA — Se, de saudades morta
Me não quer ver, apareça.
O SUJEITO (Aborrecido.) — Adeus.
VALENTINA — Adeus. (Ele vai saindo.) Até quando?
O SUJEITO (Parando.) — Prometo voltar bem cedo.
VALENTINA — Não minta.
O SUJEITO — Não tenhas medo!
Pois eu vivo em ti pensando. (Sai.)
Cena II
Valentina, só
[VALENTINA] — Pensando em mim!... Na verdade,
o tempo emprega bem mal,
(Abrindo o envelope que o sujeito lhe tem deixado nas mãos.)
Sim senhor, foi liberal.
Quanta generosidade!...
(Erguendo-se, e como que dirigindo-se ao sujeito que acaba de sair.)
Bem! cá fica arquivado
no livro dos preciosos... (Tirando três cédulas do envelope.)
Que três bilhetes formosos!
Fazem-lhe falta... Coitado...
Sei de dois credores seus
que a porta não lhe abandonam,
e sei também que tencionam
mandar citá-lo... (Outro tom.) Ora, adeus!
Deixemos estas lembranças...
Fechemos a porta à chave...
(Vai fechar a porta da esquerda, segundo plano, e voltando à cena, vai abrir uma das gavetas da secretária.)
E, nesta solidão suave,
vamos tratar de finanças.
Esta semana rendeu!
A receita, com certeza,
cento por cento a despesa
nestes dias excedeu.
(Senta-se à secretária, donde tira um monte de notas de banco, que põe-se a contar.)
Dez, vinte, trinta, quarenta,
cento e quarenta, duzentos,
trezentos, e quatrocentos,
quinhentos e cinqüenta,
seiscentos... — Que nota antiga!
Não estará recolhida? (Guarda pressurosa o dinheiro, por ouvir bater à porta.)
Quem está aí?
GUSTAVO (Fora.) — Sou eu, querida!
VALENTINA (Erguendo-se.) — Gustavo?
GUSTAVO (Fora.) — Sim, minha amiga.
(Valentina vai abrir a porta a Gustavo, que entra.)
Cena III
Valentina, Gustavo
VALENTINA (Apertando-lhe a mão)
— Não te esperava já, palavra de honra!
GUSTAVO — Já?
Querias que eu ficasse eternamente lá?
VALENTINA — Deste-te bem?
GUSTAVO — Então? Não vês como estou nédio?
Para o blazé não há mais eficaz remédio
do que passar um mês de vida regular
onde os prazeres são difíceis de encontrar.
O físico e o moral a roça purifica:
tens precisão também da roça, minha rica.
(Repoltreando-se na poltrona.)
Dize-me cá: tem vindo o deputado?
VALENTINA (Encostando-se ao espaldar da poltrona.)— Tem.
GUSTAVO — O João Ramos?
VALENTINA — E o Pimenta?
VALENTINA — Também.
GUSTAVO — Que bons amigos tens! Sou eu que tos arranjo!
Em consideração deves tomar, meu anjo...
VALENTINA (Descendo à cena.)
— Pois queres mais dinheiro?! És exigente.
GUSTAVO — Sou;
mas vê lá também a roda que te dou!
VALENTINA (Sentando-se à direita.)
— Não trouxeste o melhor dos que aqui vêm agora.
GUSTAVO — Quem é? Não é segredo?
VALENTINA — Um tipo que me adora!
Um fazendeiro rico e velho que supõe
ser ele só que os pés em minha casa põe.
GUSTAVO (Com interesse.)
— E onde foste encontrar esse tesouro raro?
VALENTINA — No Prado Fluminense. Eu vi-o, deu-me o faro,
sorri-lhe, ele sorriu-me... Eu dei-lhe o meu cartão..
Veio. Adora-me e... crê que tenho coração.
GUSTAVO — Um fazendeiro é mina; e quanto mais se explora,
mais ouro dá!... Pois bem, caríssima senhora,
- não é por me gabar - acredito que o seu
é muito bom, mas tenho um ótimo!
VALENTINA — Tu?
GUSTAVO — Eu.
VALENTINA (Erguendo-se.) — Onde ele está?
GUSTAVO (Idem.) — Depois... depois nós falaremos...
VALENTINA — Mas que custa dizer?
GUSTAVO — Tempo de sobra temos.
VALENTINA — Mas dize-me...
GUSTAVO — Não posso agora; logo mais
voltarei.
VALENTINA —‘Stás com pressa?
GUSTAVO — Estou.
VALENTINA — Aonde vais?
GUSTAVO — Subi só por te ver. Espera-me um amigo
que convidado está para almoçar comigo.
VALENTINA — Bem; vai e volta.
GUSTAVO — Dá-me uns cinqüenta mil-réis.
VALENTINA (Vai à secretária e conta o dinheiro.)
— Com muito gosto. É já... Dois, quatro, cinco, seis...
Dez e dez vinte, e trinta... Ah! Cinqüenta... Pega!
(Dá o dinheiro a Gustavo que o guarda.)
GUSTAVO — Obrigado. Até logo! (Sai por onde entrou.)
VALENTINA — Adeus. (Só.) Supõe-me cega...
Com tal balela quis uns cobres me apanhar!
(Fechando a porta.) Enfim... Vamos a ver... Bem posso me enganar.
Cena IV
Valentina , só
(Senta-se de novo à secretária, abre-a e recomeça a contar dinheiro.)
[VALENTINA] — Terminemos esta conta...
Três contos... quatro e quinhentos...
e seiscentos... setecentos...
Quase a cinco contos monta
desta semana a receita!
Vamos conferir... (Toma a pena.) O Ramos
deu-me na quarta... - Escrevamos -
oitocentos de uma feita...
(Escrevendo.) “Oitocentos”. (Pensa.) O Pimenta
aquele broche me deu
que há três dia me rendeu
trezentos e cinqüenta...
Entregou-me o deputado
todo o subsídio. Que bolo!...
É justo: um fútil, um tolo,
que só diz “muito apoiado”
e ganha um conto e quinhentos. (Escreve.)
Deu-me no dia seguinte
Mais quatro notas de vinte...
O Sá tem dado trezentos...
O fazendeiro... (Batem à porta.) Quem é?
Já lá vou!
(Guardando o dinheiro que estava espalhado.)
Deve estar certo...
Levo isto ao Banco, que é perto,
daqui a pouco. (Batem de novo.) Olé! Olé!
Com que pressa está!
O JOALHEIRO (Fora.) — Estou!
Não se acha em casa a senhora?
VALENTINA — Se quer, espere!
O JOALHEIRO (Fora.) — A demora
é pequenina.
VALENTINA — Lá vou.
(Vai abrir a porta: entra o joalheiro com uma caixa de jóias na mão.)
Cena V
Valentina, O Joalheiro
VALENTINA — Ah! é o senhor!
O JOALHEIRO (Abrindo a caixa, deixa ver um formoso par de bichas de brilhantes.)
— Ora veja!
VALENTINA — Vem aqui tentar-me, aposto!
O JOALHEIRO — Não tentei nunca, nem gosto
de tentar quem quer que seja.
(Entregando a jóia a Valentina que a examina.)
Venho mostrar-lhes uns brilhantes
como os Farâni não os tem;
Se os quer comprar, muito bem!
Se os não quer, passo adiante.
Não tento... não sei tentar...
Apenas lhos ofereço...
Nem sequer os encareço...
Isto é pegar, ou largar!
Veja bem que são granditos!
Sem jaça... veja... sem jaça...
Examine... veja... faça
O que quiser.
VALENTINA — São bonitos!
O JOALHEIRO — ‘Stou a vendê-los disposto:
se lhos vim mostrar agora,
é porque sei que a senhora
pode comprar, e tem gosto.
Não tento... tentar não vim...
VALENTINA (Fechando ao caixa.) — E baratinho mos vende?
O JOALHEIRO — Ora, a senhora compreende
que dois brilhantes assim...
de dez quilates!... É boa!
VALENTINA (Abrindo de novo a caixa.) — Dez quilates?
O JOALHEIRO — Está visto!
VALENTINA — Porém quanto valem?
O JOALHEIRO — Isto
não são brilhantes à toa!
VALENTINA — Bem vejo! Que tentação!
(Vai ao espelho e chega uma das bichas à orelha.)
O JOALHEIRO — Não são jóias de mascates,
brilhantes de dez quilates...
sem jaça... como estes são!...
VALENTINA — Mas o preço?
O JOALHEIRO — Ora, avalie...
A senhora os tem comprado...
VALENTINA (Descendo.) — Quatro contos!
O JOALHEIRO (Tomando a jóia.) — Obrigado!
Por favor não calunie
os meus brilhantes! (Mostrando-lhos.)Repare!
Cravados em dois anéis,
davam dez contos de réis!
Ambas as pedras compare:
são iguais... não vale a pena
separar...(Fecha a caixa.) Dou-lhe os marrecos...
VALENTINA — Por quanto?
O JOALHEIRO — Por seis contecos.
A diferença é pequena...
VALENTINA — Não tenho dinheiro agora;
leve os brilhantes. Adeus! (Vai sentar-se à direita.)
O JOALHEIRO — Ora por amor de Deus!
Que não mos pague a senhora,
mas algum...
Cena VI
Valentina, O Joalheiro, Joaquim Carvalho
(Joaquim Carvalho entra pela esquerda, segundo plano, sem reparar no joalheiro que, de costas voltadas para ele, limpa as bichas com o lenço.)
CARVALHO — Cá vou entrando.
(Tomando as mãos ambas de Valentina.)
Como estás?
VALENTINA — Bem, obrigada.
Mas de saudades ralada...
e você nem se lembrando
talvez que existo!
CARVALHO (Protestando.) — Ó minha...
(Vendo o joalheiro interrompe-se.)
Quem é aquele senhor?
VALENTINA — Um caixeiro.
CARVALHO — Manda-o pôr
a panos.
VALENTINA — Uma continha
vem receber, e não há
com que pagar...
CARVALHO — Não me espanta!
Gastas tanto, minha santa!
Queres dinheiro? (Tirando a carteira.) Aqui está.
Quanto lhe deves?
VALENTINA — Pouquito:
oitenta mil réis.
CARVALHO — É pouco. (Dando-lhe uma nota de cem mil réis.)
Paga, e fica tu com o troco,
enquanto eu leio o Mosquito.
(Senta-se à direita e lê um periódico de caricaturas que vai buscar sobre a secretária. Valentina dirige-se ao joalheiro.)
O JOALHEIRO (A meia voz.) —‘Stá terminado o negócio?
VALENTINA (Idem.) — Vá para casa, que em breve
alguém procurá-lo deve.
O JOALHEIRO — Se não estou eu, está meu sócio.
Se uma decisão dar pode...
VALENTINA — Irei eu mesma em pessoa
em meia hora!
O JOALHEIRO — Essa é boa!
Não quero que se incomode,
nem tenho mais pretendentes...
VALENTINA — Em meia hora lá estou.
O JOALHEIRO — Bem! bem! descansado vou.
VALENTINA — Até logo1 (O joalheiro sai por onde entrou.)
Cena VII
Valentina, Joaquim de Carvalho
CARVALHO (Deixando periódico.) — Impertinentes
são estes credores!
VALENTINA — São
por isso é que me coíbo
de dever muito;
CARVALHO — E o recibo?
Pediste-lho?
VALENTINA — E por que não?
(Aproximando-se de Carvalho e passando-lhe o braço em volta do pescoço.)
Por que não vieste esta noite?
Ai, que saudades eu tive!
Para a mísera que vive
de teu amor, fero açoite
é tua ausência! Sozinha
a noite inteira passei...
Lembrei-me tanto... Nem sei
mesmo por quê...
CARVALHO — Coitadinha!
VALENTINA (Sentando-se num tamborete, aos pés do Carvalho.)
— Porém. vamos lá saber:
e tu?... tu como passaste?
CARVALHO — Assim...
VALENTINA — De mim te lembraste?
CARVALHO — De ti me posso esquecer?
E tu?
VALENTINA — Muito despeitada...
CARVALHO — Por que, meu bem?
VALENTINA — Faze idéia:
desejar uma tetéia
e não poder... Que maçada!
CARVALHO — Não poder o quê?
VALENTINA — Comprá-la.
CARVALHO — Por que comprá-la não podes?
VALENTINA — Pois pensa que a dão de godes?
CARVALHO — Se é muito cara, deixá-la!
VALENTINA — É difícil esquecer!
CARVALHO — Dificuldades não vejo...
VALENTINA (Erguendo-se.) — Sufocar o meu desejo!
Matá-lo logo ao nascer!
Esquecer! Fora um suplício!
Pois desejar hei de em vão! (Batendo o pé.)
Oh! não! não!... Mil vezes não!...
CARVALHO (Erguendo-se.) — Mas eu não digo...
VALENTINA (Evitando-o.) — Outro ofício!
CARVALHO — Menina, não te exacerbes!
Se queres a tal tetéia,
não me faças cara feia,
que dentro em pouco a recebes!
(Tomando o chapéu que deixou na cadeira perto da secretária.)
Dize-me o que é que num salto,
vou buscá-la. Dize! o que é?...
VALENTINA (À parte.) — Parece estar de maré...
Preparemos este assalto!...
CARVALHO — Algum chapéu enfeitado
pras corridas de amanhã?
Algum vestido de lã?
VALENTINA (Com desprezo.) — Lã.
CARVALHO — Ou seda.
VALENTINA — ‘Stá enganado.
É um capricho.
CARVALHO (Deixando o chapéu.) — Ah! caprichas?
VALENTINA — Procure.
CARVALHO — É coisa que enfeita?
VALENTINA — É uma cosa que se deita
nas orelhas!
CARVALHO — Umas bichas?
VALENTINA — Tem talento: adivinhou!
(Senta-se no sofá.)
CARVALHO — Nas orelhas... Pois quem julga
não sejam bichas? (À parte.) Coa pulga
atrás das minhas estou.
De que são as bichas?
VALENTINA — Ora!
CARVALHO (À parte.) — Estes caprichos aleijam...
VALENTINA (Erguendo-se.) — Pois há bichas que não sejam
de brilhantes?
CARVALHO — Sim, senhora:
há bichas de coralina;
há de esmeralda, safira,
de pingos d’água...
VALENTINA — Mentira!
CARVALHO — Não me desmintas, menina!
Aos teus desejos conforme
‘stou, mesmo quando caprichas;
mas entre tetéias e bichas
há uma diferença enorme!
VALENTINA — Em quê?
CARVALHO — No preço: a tetéia
é sempre coisa miúda,
e as bichas, Deus nos acuda!
VALENTINA — Nem tanto assim!
CARVALHO — Faço idéia
que essas, que desejas tanto,
&#