Artur Azevedo- Livros completos
"A filha de Maria Angu"
Adaptação brasileira da Opereta
LA FILLE DE MME. ANGOT
DE
SIRAUDIN, CLAIRVILLE E KONING
Música de Lecocq
Nova edição, Alterada
1893
OPERETA EM 3 ATOS
Representada pela primeira vez no Rio de Janeiro, no Teatro Fênix Dramática, em 21 de março de 1876, e, depois de alterada conforme esta edição, representada pela primeira vez na mesma cidade, no Teatro Santana, em 17 de março de 1894
Personagens
Clarinha Angu
Chica Valsa
Ângelo Bitu
Sampaio
Barnabé
SOTA-e-ÁS
O Escrivão
Cardoso
Guilherme
Uma Autoridade
Um Tipo
O Juiz da Festa
Chica Pitada
Gaivota
Genoveva
Babu
Teresa
Leonor
Cidalisa
Mademoiselle X
Operários, jogadores, urbanos, festeiros, cocotes, soldados da polícia, pessoas do povo, etc.
A ação do 1º e 3º ato passa-se na freguesia de Maria Angu, e a do 2º na cidade do Rio de Janeiro, em 1876.
ATO PRIMEIRO
Praça pública em Maria Angu. A esquerda uma casa com este letreiro: “Barnabé, barbeiro e sangrador. Apelica bixas.” Ao fundo, uma grande fábrica com este letreiro: “Fábrica de Fiação e Tecidos Pinho & Companhia.”
Cena I
Botelho, Cardoso, Guilherme, Gaivota, Teresa, Operários depois Barnabé
Coro
— Que prazer,
Que alegria
Deve haver
Neste dia!
Pois Clarinha
Casadinha
Enfim nós vamos ver!
OS HOMENS (À esquerda.) - Olá! Olá! Barnabé! Olá!
BARNABÉ (Aparecendo à janela.) - Aqui estou!
TODOS - O Barnabé lá está!
BARNABÉ - Já lá vou! (Desaparece.)
UNS - Que pressa tem!
OUTROS - Faz muito bem!
AS MULHERES (À direita) - Clarinha! Clarinha! Clarinha!
BABU (Aparecendo à janela.) - ‘Stá se aprontando a sinhazinha.
TODOS - Que diz a mulatinha!
BABU - Mas não se pode demorar,
- Pois o véu já foi colocar.
BARNABÉ (Saindo de casa, vestido de noivo.)
- Gentis amigos meus
Aqui estou! Aqui estou!
Eu sou feliz, meu Deus!
Coplas
I
- Inda um sonho me parece
Tudo quanto aconteceu!
Toda a minha alma estremece
Estremece o peito meu!
Todo mundo agora inveja
O prazer que vou sentir...
Vou solteiro entrar na igreja
E casado vou sair!
Vendo as coisas neste pé,
Sinto dentro um quer-que-é!
Coro
- Nosso amigo Barnabé
Sente dentro um quer-que-é!
II
BARNABÉ - Vai chegar a noiva amada
Nos seus trajes virginais!
Vai chegar envergonhada,
E mais bela, muito mais!
Meus senhores e senhoras,
Tenham compaixão de nós:
Não nos macem muitas horas...
Nós queremos ficar sós!
Vendo as coisas neste pé,
Sinto dentro um quer-que-é!
BABU (À Janela.) - Aí vai a noiva bela!
BARNABÉ - Ah! É ela!
TODOS - É ela!
Cena II
Os mesmos, Clarinha Vestida de noiva e acompanhada pela madrinha de casamento
Coro
- Aí! como vem galante!
Assim tão elegante
Ninguém há!
Meu Deus, está tão linda!
É mais bonita ainda
Vestida como está!
(Durante toda esta cena, Clarinha deve conservar os olhos baixos.)
OS HOMENS - Vem abraçar a gente!
AS MULHERES - A nós primeiramente!
BARNABÉ -Vão amarrotar-lhe o vestido!
Abraça apenas teu marido!
CLARINHA -Da mesma forma amarrotá-lo-ia!
CARDOSO (Repelindo Barnabé.) - Sim! sim! Pra trás!
AS MULHERES - Então Clarinha,
Que dizes tu desta festinha
CLARINHA - Que digo eu?
AS MULHERES -Fala!
CLARINHA - Não sei.
Romança
I
- Meus qu’ridos pais, vós dissestes-me um dia
Que era preciso de estado mudar:
Contrariar-vos eu não pretendia,
E consenti sem me fazer rogar.
Mas, com franqueza, aqui digo e sustento
Que ignoro ainda em que vou me meter...
Que poderei dizer do casamento?
Eu nada sei, nada posso dizer...
Coro
Candura só Clarinha tem!
BARNABÉ - Ela nada sabe! Ainda bem!
II
CLARINHA - Aqui fiquei, orfãzinha inocente,
E resolvestes mandar-me educar;
Tudo aprendi, isto é, tão somente
O que uma moça não deve ignorar.
Fui até hoje ajuizada e modesta,
E de hoje em diante de certo o serei;
Mas só direi o que penso da festa
Quando souber, pois ora não sei...
Coro
- Candura só Clarinha tem!
BARNABÉ - Ela nada sabe! Ainda bem!...
BOTELHO - Para a Matriz marchar sem mais demora!
CARDOSO - Para a Matriz? Cedo inda é!
Temos por nós inda uma hora,
Para cair num balancé!
BARNABÉ - Vou para perto da Matriz,
Sentar-me vou no chafariz,
Pois junto ao templo do himeneu,
Mais paciência terei eu!
Coro
- Pois dito está!
Vamos pra lá!
Que prazer,
Que alegria
Deve haver
Neste dia!
Pois Clarinha
Casadinha
Enfim nós vamos ver!
Cena III
Os mesmos, Chica Pitada
CHICA - Ouçam!
TODOS - Que é?
CHICA - Um obstáculo se opõe ao casamento!
TODOS - Um obstáculo!
BARNABÉ - Bonito!
CHICA - Não é nada de cuidado. Sossega, Barnabé, que não te foge a noiva! Trata-se de uma pequena contrariedade. Vou dizer o que tenho a dizer, mas é preciso que Clarinha não esteja aqui. ( Levando-a para casa.) Entra por alguns momentos... vai...
TODOS (Entre si, murmurando.) - Que será? Um obstáculo!
Cena IV
Os mesmos, menos Clarinha e Babu
GUILHERME - Vamos! Desembuche! Que há de novo?
TODOS - Fale! Fale!
BOTELHO - Vamos, senão rebento!
BARNABÉ - Estou em brasas!
CHICA - Lá vai rapazes! Sabem vocês que nos metemos em boas?
CARDOSO - Quais boas, homem?
CHICA - Quando a defunta Maria Angu morreu, pobre que nem Jó, ela que tinha tanto dinheiro, e deixou no mundo uma filhinha que, com a graça do Senhor, nasceu no Hotel Ravot, lá na Corte...
TODOS - Sim, sim! E que mais?
CHICA - Não estivemos com meias medidas, hein? Dissemos todos a uma: Já que a pequena não tem pai, nem mãe, há de ser filha da gente cá da fábrica! Foi dito e feito, rapazes! Vocês ficaram sendo pais (Às mulheres.) e nós, mães! Ora aí está!
TERESA - Até aí morreu o Neves.
GUILHERME (Meio triste.) - Mas para que diabo vir cá lembrar essas coisas?
CHICA - Essas coisa pouco têm que ver com o que lhes quero contar. O caso é que trasantontem fizemos uma grande asneira.
TODOS - Uma asneira!
CHICA - Para podermos casar a pequena, como não havia certidão de idade, fomos ao Senhor Vigário e declaramos que ela era filha do Alferes Angu e de sua mulher, Dona Maria Ernestina de Carvalho Angu.
TODOS - E daí?
CHICA - Daí que a pequena tem vinte anos e há vinte e dois que o Alferes Angu deu a casca!
CARDOSO - Nem tal nos passou pela cabeça!
BOTELHO - Mas havia de passar pela do alferes...
CHICA - Não me interrompam! Ontem mandaram uma carta anônima à comadre do Senhor Vigário, dizendo que a Clarinha entrou neste mundo dois anos depois que o pai saiu.
BARNABÉ - Que é lá isso? Então minha noiva não é filha do seu pai? De quem então é ela filha?
CHICA - Valha-me Nossa Senhora! Não há de ser do outro senão daquele sujeito rico que lhe dava cama e mesa no Hotel Ravot.
BARNABÉ - A quem? Ao pai de minha?...
CHICA - Não: à mãe... Era um barão muito rico!
BARNABÉ - Quem?... a mãe?...
CHICA - Não: o pai!
BARNABÉ - O pai da minha noiva, um barão! Que honra, meu Deus! que honra para um barbeiro sangrador! Ó seu Botelho, o pai, sendo barão a filha que vem a ser?
BOTELHO - Baroa!
CARDOSO - Continue, tia Chica Pitada. Que tem a comadre do Senhor Vigário com o que nos acaba de contar?
CHICA - A comadre nada; mas diz o Senhor Vigário que é preciso por força arranjar-lhe outro pai.
TODOS - Ah!
BOTELHO - Se o noivo estiver pelos autos!
BARNABÉ - Eu? ora essa! Não me caso com o pai, caso-me com a filha!
GUILHERME- E podes levantar as mãos para o céu! Aquilo é mesmo uma tetéia!
GAIVOTA - Nós, que lhe servimos de pai e mãe, não olhamos as despesas para dar-lhe uma educação esmerada.
CARDOSO- Foi criada como uma marquesa!
CHICA - Podes dizer uma princesa, porque o foi no colégio das irmãs de caridade.
GUILHERME - Razão pela qual ficou com um ligeiro sotaque francês que lhe dá muita graça.
TERESA - E que juizinho o dela! Como é modesta... inocente!...
BARNABÉ - Oh! lá inocente é ela! Por isso meto eu as mãos no fogo!
CARDOSO - E ainda te queixas?
BARNABÉ - Tão inocente que não se atreve nem a olhar para mim que sou seu noivo!
CHICA - Que diferença entre mãe e filha!
BARNABÉ - É verdade: vocês que conheceram como as palmas das mãos essa famosa Maria Angu, que deu nome a esta freguesia, digam-me: é verdade tudo o que contam a seu respeito?
CHICA - Se é verdade? Ora essa! Ouve lá, meu rapaz!...
Coro
I
- Na fábrica do Pinho
Ainda a encontrei
Era um santo Antoninho,
Onde é que te porei!
Se acaso lhe tocava
Algum sujeito, zás!
(Deita as mãos nas ilhargas.)
Aqui as mãos botava
E agora vê-lo-ás!
Arrogante,
Petulante,
tendo uns cobres no baú,
Respondona,
Gritalhona,
— Era assim Maria Angu!
CORO — Arrogante, etc.;
II
CHICA — Andou por Sorocaba
Por Guaratinguetá,
Por Pindamonhangaba
Por Jacarepaguá.
Depois, em Caçapava,
Um certo capitão
Vendeu-a como escrava
E foi pra correção!
Paraíba
Guaratiba,
Chapéu d’Uvas, Iguaçu,
Itaoca
Aiuroca
Tudo viu Maria Angu!
CORO — Paraíba, etc.
III
CHICA — Enfim, por toda a parte
Depois de muito andar,
Sem mais tirte nem guarte
Na corte foi parar;
Um barão com grandeza
Por ela se enguiçou,
E deu-lhe cama e mesa
No grande Hotel Ravot!
Arrogante, etc.
BARNABÉ - Tudo isso é muito bom, mas vamos, vamos, que se vai fazendo tarde! Eu sinto uma vontade de me casar...
VOZES (Fora.) - Viva o Imparcial! Viva Nhonhô Bitu!
TODOS - Que é isto?Que barulho é este?
CHICA - Ora o que há de ser?É o vagabundo do Nhonhô Bitu!
GUILHERME - Quê! pois já saiu da cadeia?...
TERESA - Ele para lá na prisão!...
CARDOSO - Não sei como diabo tece os pauzinhos! O Senhor Subdelegado, que não é para graças, manda prendê-lo todas as semanas, e daí a três dias aparece de novo o jornal!...
GAIVOTA - Mas por que o prendem?
CHICA - Pois não sabes que ele é republicano, e escreve artigos contra o Senhor Subdelegado, que faz o que entende? Manda quem pode! E a graça é que está proibida a leitura do Imparcial, sob pena de três dias de prisão e multa correspondente... a três meses!
BARNABÉ - Se esse pássaro de arribação se contentasse com escrever gazetas contra a autoridade, era bem bom, mas arrastar a asa à minha noiva!...
BOTELHO - Lá nesse ponto, Barnabé, podes estar sossegado.
GUILHERME - Ora adeus! cá estamos nós!
OS HOMENS - E também nós!
AS MULHERES - E então nós? e então nós?
BARNABÉ - Vocês tem razão, meus estimados sogros e sogras; quando uma rapariga tem tantos pais e tantas mães, não se deve temer um sedutor! (Rumor fora.)
BITU (Fora.) - Meu povo, daqui a nada aparece o Imparcial! A assinatura são cinco mil réis por trimestre, pagos adiantados! Número avulso, cem réis! (Entrando.) Daqui a pouco será distribuído o interessante e enérgico periódico o Imparcial! Vem descompostura bravia! Viva a liberdade de imprensa!
VOZES (Fora.) - Viva! viva!
Cena V
Os mesmos, Bitu
BOTELHO - Então já saiu do xilindró, Nhonhô Bitu?
BITU - Olé! que chiquismo!
GUILHERME - Mais dia, menos dia, o senhor é enforcado ali ao Largo da Matriz!
BITU - Não creia nisso, Mestre Guilherme; fui hoje solto pela qüinquagésima; mas é muito provável que me prendam daqui a pouco, logo que se distribua o Imparcial, para ser solto amanhã. E que fazem vocês, infelizes filhos de Maria Angu? Que fazem vocês, que não reagem contra as arbitrariedades de um burlesco fanfarrão, arvorado em autoridade policial? Mas, ora adeus! diz o ditado “o boi solto lambe-se todo”; eu mesmo preso lambo-me bem...
BARNABÉ - Então você é boi?
BITU - Já estabeleci na Câmara Municipal, isto é, na cadeia, o meu escritório de redação.
CARDOSO - Mas o senhor quem é e de onde veio, não nos dirá?
BITU - Pergunta-me bem a quem não lhe pode responder. Todos sabem a minha história, menos eu, que ignoro quem sou, de onde vim e para onde vou. Aqui onde me vêem está um grande homem! Abraço as idéias do século e pugno pela nobre causa da democracia! Em 1867 tentei proclamar uma pequena república na Ilha dos Ratos! Foi a falta de metal sonante que me privou de fazer lavrar a minha santa propaganda...
BARNABÉ (À parte.) - Santa propaganda! nunca vi esta santa na folhinha!
BITU - Mas para que todo este aparato?
BARNABÉ (À parte.) - Um bonito nome! Propaganda!
CHICA (A Bitu.) - Temos hoje um casório.
BARNABÉ (À parte.) - Quando tiver uma filha, hei de chamá-la Propaganda!
BOTELHO (Mostrando Barnabé.) - E o futuro está presente.
BITU - Pois é este paspalhão? Estou passado!
BARNABÉ - Paspalhão é ele!
BITU - Meus sinceros parabéns, mestre Barnabé.
BARNABÉ - Aceito os parabéns, mas engula, engula o paspalhão!
BITU - Pois engulo, essa não seja a dúvida.
BARNABÉ - E não engolisse!
BITU - E com quem se casa este pax-vobis?
BARNABÉ (Entre dentes.) - Insolente!
CARDOSO - A noiva é nossa filha.
CHICA - A filha dos operários da fábrica!
TODOS - Clarinha!
BITU - Clarinha? Ah! é a Clarinha? (Inclinando-se diante de Barnabé.) Nova edição de parabéns!
BOTELHO - A propósito, meu escrevinhador de gazetas; tenho a lembrar-lhe que a honra de nosso futuro genro nos é tão preciosa como a nossa, ouviu?...
CARDOSO - E que se algum pelintra tivesse o desaforo de ... Percebe?
GUILHERME - Tinha de se haver conosco, entende!
OS HOMENS - Com todos nós!
AS MULHERES - E então nós!
BITU - Que querem vocês dizes na sua?
CARDOSO - Simples advertência, Nhonhô. Agora rapaziada, vamos embora!
TODOS - Vamos embora!
Coro
- Arrogante
petulante, etc., etc., (Saem todos.)
Cena VI
[ BITU ]
BITU (Só.) - Com que então ela casa-se... apesar de todas as suas promessas, apesar do juramento, que lhe fiz, de matar-me, se se ligasse ao paspalhão do barbeiro! Olhem que é mesmo um paspalhão! Mas, enfim, louvado Deus, não me hão de faltar consolações, e, para prova, aqui está uma cartinha que acabo de receber pelo correio. (Lendo.) “Senhor Ângelo Bitu. Uma pessoa que vela pelo senhor e se desvela pelo seu bem estar, espera que depois d’amanhã se ache no Largo do Rossio, na Corte, às quatro horas da tarde, junto ao quiosque que fica em frente à Rua do Sacramento, e siga a preta velha que lhe disser: venho da parte daquela que se desvela pelo senhor”. (Declamando.) E com tanta vela estou às escuras! Não importa! Tomarei o trem das dez... Naturalmente esta carta é escrita por uma mulher... (Cheirando a carta.) Isto não é cheiro de homem...
Rondó
— Eu gosto muito da Clarinha,
Mas não devo me entristecer,
Pois quero crer que esta cartinha
Consolação vem me trazer.
Este perfume capitoso
Revela esplêndida mulher,
Que, desejando arder em gozo,
Nos lábios seus, meus lábios quer!
Eu gosto muito da Clarinha,
E ser quisera o esposo seu;
Digam porém, se é culpa minha
Coisa melhor baixar do céu!
— Esta carta misteriosa
Me pôs, confesso, o juízo a arder!
A mão que fez tão bela prosa
Ansioso estou por conhecer!
Eu gosto muito da Clarinha;
Ela, porém, vai se casar...
Passou-me o pé a Sinhazinha,
Hei de lhe o pé também passar!
De mais a mais este mistério
o meu espírito agitou!
Para saber se o caso é sério,
No trem das dez à Corte vou.
Mas deixe estar, Dona Clarinha,
Que, se me passa agora o pé,
Um belo dia será minha,
Ligada embora ao Barnabé!
Cena VII
Bitu, Clarinha, Babu
BITU (Á parte.) - Ela!
CLARINHA (A Babu.) - Ouviste bem? Está alerta!
BABU - Eh, eh, Sinhazinha! Veja o que faz!
CLARINHA - Fica ali na esquina, e, se os vires, vem dizer-me depressa.
BABU - Ah, Sinhazinha! No dia do seu casamento! (À parte.) O que fará depois? (Sai.)
CLARINHA (Indo resolutamente a Bitu.) - Então? Não me cumprimentas pelo meu vestuário?
BITU (Friamente.) - Minha senhora...
CLARINHA - Não gostas de me ver assim vestida?
BITU - Se queres que te fale com franqueza...
CLARINHA - O caso é que a estas horas eu já devia estar casadinha da silva...
BITU (Tristemente.) - Casada...
CLARINHA - Mas achei um pretexto para demorar a cerimônia: escrevi uma carta anônima ao vigário.
BITU - E a cerimônia foi transferida à última hora?
CLARINHA - Infelizmente a carta não produziu um resultado completo.
BITU - E agora?
CLARINHA - É preciso procurar outro pretexto; não achas?
BITU - Se eu achasse, estava tudo arranjado.
CLARINHA - Não te lembras de nenhum?
BITU - O mais simples é este: declaras que morres por mim e que eu morro por ti; que somos dois morrões, como dizia o outro.
CLARINHA - Mas não me havias pedido que guardasse segredo?
BITU - Então não sabes por quê? Porque nada sou, porque não tenho onde cair morto... não passo de um simples jornalista da roça. A propósito: aqui tens o número de hoje do Imparcial. Tem de ser distribuído daqui a pouco. Estou só a espera do entregador; não o mostres por ora a ninguém.
CLARINHA (Guardando o jornal.) - Eu já recusei dezenove pretendentes. Bem sabes que meus pais e minhas mães fazem empenho em meu casamento com Barnabé. Eu não tinha motivo algum para recusá-lo, e, se o recusasse, seria afligi-los. Que me restava a fazer, se devo tudo àquela boa gente?
BITU - Casas por gratidão, não é assim?
CLARINHA - Não! não me caso, mesmo porque, se o fizesse, tu suicidavas-te.
BITU (Tirando uma grande faca.) - E suicido-me!... (Como quem quer cortar o pescoço.)
CLARINHA - Acredito... acredito... guarda a faca! (Fá-lo guardar a faca.) Vê o dilema em que me acho; se me caso, matas-te; se não me caso, desgosto a meus pais e minhas mães. Ah! se minha verdadeira mãe estivesse em meu lugar, outro galo cantaria!
BITU - Quem? Maria Angu?
CLARINHA - Era mulher decidida! Para ela não havia obstáculo possível!
BITU - Como diabo se sairia a velha deste entalação?
CLARINHA - É nisso que estou parafusando...
BITU - Parafusemos...
Dueto
AMBOS — Esse pretexto desejado
Encontraremos, tu verás,
Pois diz um célebre ditado
Que a união a força faz.
CLARINHA — Posso dizer que estou doente
BITU — Isso não pega! Tens tão boa cor!
CLARINHA — Vou procurar coisa melhor.
BITU — Esse pretexto é deficiente.
CLARINHA — Não! Não! Dificultoso está!
Maria Angu teria achado já!
AMBOS — Maria Angu teria achado já!...
BITU — Se o Barnabé, o teu futuro,
Exp’rimentar a força do Bitu?
CLARINHA — Queres dar-lhe?
BITU — Hein? que dizes tu?
Creio que enfim achei um furo!
CLARINHA —Não! Não! Dificultoso está!
Maria Angu teria achado já!...
AMBOS —Maria Angu teria achado já!...
BITU — Ao Barnabé prevenirás,
Para ver se te renuncia,
Que tu, mais dia menos dia,
O enganarás...
CLARINHA — Isso se faz...
Mas sem se dizer.
BITU — Então não sei que possamos fazer!
CLARINHA — Eu tenho um meio extraordinário
Que pode evitar tamanho desgosto:
No momento em que o S’or Vigário
Perguntar se caso por gosto,
Em vez de “sim”, eu direi”não”!
BITU — Tu dirás “não”?
CLARINHA — Eu direi”não”!
BITU —‘Stá dito então!
Ah! que alegria em mim nasce!
Artur Azevedo- Livros completos
"A filha de Maria Angu"
Adaptação brasileira da Opereta
LA FILLE DE MME. ANGOT
DE
SIRAUDIN, CLAIRVILLE E KONING
Música de Lecocq
Nova edição, Alterada
1893
OPERETA EM 3 ATOS
Representada pela primeira vez no Rio de Janeiro, no Teatro Fênix Dramática, em 21 de março de 1876, e, depois de alterada conforme esta edição, representada pela primeira vez na mesma cidade, no Teatro Santana, em 17 de março de 1894
Personagens
Clarinha Angu
Chica Valsa
Ângelo Bitu
Sampaio
Barnabé
SOTA-e-ÁS
O Escrivão
Cardoso
Guilherme
Uma Autoridade
Um Tipo
O Juiz da Festa
Chica Pitada
Gaivota
Genoveva
Babu
Teresa
Leonor
Cidalisa
Mademoiselle X
Operários, jogadores, urbanos, festeiros, cocotes, soldados da polícia, pessoas do povo, etc.
A ação do 1º e 3º ato passa-se na freguesia de Maria Angu, e a do 2º na cidade do Rio de Janeiro, em 1876.
ATO PRIMEIRO
Praça pública em Maria Angu. A esquerda uma casa com este letreiro: “Barnabé, barbeiro e sangrador. Apelica bixas.” Ao fundo, uma grande fábrica com este letreiro: “Fábrica de Fiação e Tecidos Pinho & Companhia.”
Cena I
Botelho, Cardoso, Guilherme, Gaivota, Teresa, Operários depois Barnabé
Coro
— Que prazer,
Que alegria
Deve haver
Neste dia!
Pois Clarinha
Casadinha
Enfim nós vamos ver!
OS HOMENS (À esquerda.) - Olá! Olá! Barnabé! Olá!
BARNABÉ (Aparecendo à janela.) - Aqui estou!
TODOS - O Barnabé lá está!
BARNABÉ - Já lá vou! (Desaparece.)
UNS - Que pressa tem!
OUTROS - Faz muito bem!
AS MULHERES (À direita) - Clarinha! Clarinha! Clarinha!
BABU (Aparecendo à janela.) - ‘Stá se aprontando a sinhazinha.
TODOS - Que diz a mulatinha!
BABU - Mas não se pode demorar,
- Pois o véu já foi colocar.
BARNABÉ (Saindo de casa, vestido de noivo.)
- Gentis amigos meus
Aqui estou! Aqui estou!
Eu sou feliz, meu Deus!
Coplas
I
- Inda um sonho me parece
Tudo quanto aconteceu!
Toda a minha alma estremece
Estremece o peito meu!
Todo mundo agora inveja
O prazer que vou sentir...
Vou solteiro entrar na igreja
E casado vou sair!
Vendo as coisas neste pé,
Sinto dentro um quer-que-é!
Coro
- Nosso amigo Barnabé
Sente dentro um quer-que-é!
II
BARNABÉ - Vai chegar a noiva amada
Nos seus trajes virginais!
Vai chegar envergonhada,
E mais bela, muito mais!
Meus senhores e senhoras,
Tenham compaixão de nós:
Não nos macem muitas horas...
Nós queremos ficar sós!
Vendo as coisas neste pé,
Sinto dentro um quer-que-é!
BABU (À Janela.) - Aí vai a noiva bela!
BARNABÉ - Ah! É ela!
TODOS - É ela!
Cena II
Os mesmos, Clarinha Vestida de noiva e acompanhada pela madrinha de casamento
Coro
- Aí! como vem galante!
Assim tão elegante
Ninguém há!
Meu Deus, está tão linda!
É mais bonita ainda
Vestida como está!
(Durante toda esta cena, Clarinha deve conservar os olhos baixos.)
OS HOMENS - Vem abraçar a gente!
AS MULHERES - A nós primeiramente!
BARNABÉ -Vão amarrotar-lhe o vestido!
Abraça apenas teu marido!
CLARINHA -Da mesma forma amarrotá-lo-ia!
CARDOSO (Repelindo Barnabé.) - Sim! sim! Pra trás!
AS MULHERES - Então Clarinha,
Que dizes tu desta festinha
CLARINHA - Que digo eu?
AS MULHERES -Fala!
CLARINHA - Não sei.
Romança
I
- Meus qu’ridos pais, vós dissestes-me um dia
Que era preciso de estado mudar:
Contrariar-vos eu não pretendia,
E consenti sem me fazer rogar.
Mas, com franqueza, aqui digo e sustento
Que ignoro ainda em que vou me meter...
Que poderei dizer do casamento?
Eu nada sei, nada posso dizer...
Coro
Candura só Clarinha tem!
BARNABÉ - Ela nada sabe! Ainda bem!
II
CLARINHA - Aqui fiquei, orfãzinha inocente,
E resolvestes mandar-me educar;
Tudo aprendi, isto é, tão somente
O que uma moça não deve ignorar.
Fui até hoje ajuizada e modesta,
E de hoje em diante de certo o serei;
Mas só direi o que penso da festa
Quando souber, pois ora não sei...
Coro
- Candura só Clarinha tem!
BARNABÉ - Ela nada sabe! Ainda bem!...
BOTELHO - Para a Matriz marchar sem mais demora!
CARDOSO - Para a Matriz? Cedo inda é!
Temos por nós inda uma hora,
Para cair num balancé!
BARNABÉ - Vou para perto da Matriz,
Sentar-me vou no chafariz,
Pois junto ao templo do himeneu,
Mais paciência terei eu!
Coro
- Pois dito está!
Vamos pra lá!
Que prazer,
Que alegria
Deve haver
Neste dia!
Pois Clarinha
Casadinha
Enfim nós vamos ver!
Cena III
Os mesmos, Chica Pitada
CHICA - Ouçam!
TODOS - Que é?
CHICA - Um obstáculo se opõe ao casamento!
TODOS - Um obstáculo!
BARNABÉ - Bonito!
CHICA - Não é nada de cuidado. Sossega, Barnabé, que não te foge a noiva! Trata-se de uma pequena contrariedade. Vou dizer o que tenho a dizer, mas é preciso que Clarinha não esteja aqui. ( Levando-a para casa.) Entra por alguns momentos... vai...
TODOS (Entre si, murmurando.) - Que será? Um obstáculo!
Cena IV
Os mesmos, menos Clarinha e Babu
GUILHERME - Vamos! Desembuche! Que há de novo?
TODOS - Fale! Fale!
BOTELHO - Vamos, senão rebento!
BARNABÉ - Estou em brasas!
CHICA - Lá vai rapazes! Sabem vocês que nos metemos em boas?
CARDOSO - Quais boas, homem?
CHICA - Quando a defunta Maria Angu morreu, pobre que nem Jó, ela que tinha tanto dinheiro, e deixou no mundo uma filhinha que, com a graça do Senhor, nasceu no Hotel Ravot, lá na Corte...
TODOS - Sim, sim! E que mais?
CHICA - Não estivemos com meias medidas, hein? Dissemos todos a uma: Já que a pequena não tem pai, nem mãe, há de ser filha da gente cá da fábrica! Foi dito e feito, rapazes! Vocês ficaram sendo pais (Às mulheres.) e nós, mães! Ora aí está!
TERESA - Até aí morreu o Neves.
GUILHERME (Meio triste.) - Mas para que diabo vir cá lembrar essas coisas?
CHICA - Essas coisa pouco têm que ver com o que lhes quero contar. O caso é que trasantontem fizemos uma grande asneira.
TODOS - Uma asneira!
CHICA - Para podermos casar a pequena, como não havia certidão de idade, fomos ao Senhor Vigário e declaramos que ela era filha do Alferes Angu e de sua mulher, Dona Maria Ernestina de Carvalho Angu.
TODOS - E daí?
CHICA - Daí que a pequena tem vinte anos e há vinte e dois que o Alferes Angu deu a casca!
CARDOSO - Nem tal nos passou pela cabeça!
BOTELHO - Mas havia de passar pela do alferes...
CHICA - Não me interrompam! Ontem mandaram uma carta anônima à comadre do Senhor Vigário, dizendo que a Clarinha entrou neste mundo dois anos depois que o pai saiu.
BARNABÉ - Que é lá isso? Então minha noiva não é filha do seu pai? De quem então é ela filha?
CHICA - Valha-me Nossa Senhora! Não há de ser do outro senão daquele sujeito rico que lhe dava cama e mesa no Hotel Ravot.
BARNABÉ - A quem? Ao pai de minha?...
CHICA - Não: à mãe... Era um barão muito rico!
BARNABÉ - Quem?... a mãe?...
CHICA - Não: o pai!
BARNABÉ - O pai da minha noiva, um barão! Que honra, meu Deus! que honra para um barbeiro sangrador! Ó seu Botelho, o pai, sendo barão a filha que vem a ser?
BOTELHO - Baroa!
CARDOSO - Continue, tia Chica Pitada. Que tem a comadre do Senhor Vigário com o que nos acaba de contar?
CHICA - A comadre nada; mas diz o Senhor Vigário que é preciso por força arranjar-lhe outro pai.
TODOS - Ah!
BOTELHO - Se o noivo estiver pelos autos!
BARNABÉ - Eu? ora essa! Não me caso com o pai, caso-me com a filha!
GUILHERME- E podes levantar as mãos para o céu! Aquilo é mesmo uma tetéia!
GAIVOTA - Nós, que lhe servimos de pai e mãe, não olhamos as despesas para dar-lhe uma educação esmerada.
CARDOSO- Foi criada como uma marquesa!
CHICA - Podes dizer uma princesa, porque o foi no colégio das irmãs de caridade.
GUILHERME - Razão pela qual ficou com um ligeiro sotaque francês que lhe dá muita graça.
TERESA - E que juizinho o dela! Como é modesta... inocente!...
BARNABÉ - Oh! lá inocente é ela! Por isso meto eu as mãos no fogo!
CARDOSO - E ainda te queixas?
BARNABÉ - Tão inocente que não se atreve nem a olhar para mim que sou seu noivo!
CHICA - Que diferença entre mãe e filha!
BARNABÉ - É verdade: vocês que conheceram como as palmas das mãos essa famosa Maria Angu, que deu nome a esta freguesia, digam-me: é verdade tudo o que contam a seu respeito?
CHICA - Se é verdade? Ora essa! Ouve lá, meu rapaz!...
Coro
I
- Na fábrica do Pinho
Ainda a encontrei
Era um santo Antoninho,
Onde é que te porei!
Se acaso lhe tocava
Algum sujeito, zás!
(Deita as mãos nas ilhargas.)
Aqui as mãos botava
E agora vê-lo-ás!
Arrogante,
Petulante,
tendo uns cobres no baú,
Respondona,
Gritalhona,
— Era assim Maria Angu!
CORO — Arrogante, etc.;
II
CHICA — Andou por Sorocaba
Por Guaratinguetá,
Por Pindamonhangaba
Por Jacarepaguá.
Depois, em Caçapava,
Um certo capitão
Vendeu-a como escrava
E foi pra correção!
Paraíba
Guaratiba,
Chapéu d’Uvas, Iguaçu,
Itaoca
Aiuroca
Tudo viu Maria Angu!
CORO — Paraíba, etc.
III
CHICA — Enfim, por toda a parte
Depois de muito andar,
Sem mais tirte nem guarte
Na corte foi parar;
Um barão com grandeza
Por ela se enguiçou,
E deu-lhe cama e mesa
No grande Hotel Ravot!
Arrogante, etc.
BARNABÉ - Tudo isso é muito bom, mas vamos, vamos, que se vai fazendo tarde! Eu sinto uma vontade de me casar...
VOZES (Fora.) - Viva o Imparcial! Viva Nhonhô Bitu!
TODOS - Que é isto?Que barulho é este?
CHICA - Ora o que há de ser?É o vagabundo do Nhonhô Bitu!
GUILHERME - Quê! pois já saiu da cadeia?...
TERESA - Ele para lá na prisão!...
CARDOSO - Não sei como diabo tece os pauzinhos! O Senhor Subdelegado, que não é para graças, manda prendê-lo todas as semanas, e daí a três dias aparece de novo o jornal!...
GAIVOTA - Mas por que o prendem?
CHICA - Pois não sabes que ele é republicano, e escreve artigos contra o Senhor Subdelegado, que faz o que entende? Manda quem pode! E a graça é que está proibida a leitura do Imparcial, sob pena de três dias de prisão e multa correspondente... a três meses!
BARNABÉ - Se esse pássaro de arribação se contentasse com escrever gazetas contra a autoridade, era bem bom, mas arrastar a asa à minha noiva!...
BOTELHO - Lá nesse ponto, Barnabé, podes estar sossegado.
GUILHERME - Ora adeus! cá estamos nós!
OS HOMENS - E também nós!
AS MULHERES - E então nós? e então nós?
BARNABÉ - Vocês tem razão, meus estimados sogros e sogras; quando uma rapariga tem tantos pais e tantas mães, não se deve temer um sedutor! (Rumor fora.)
BITU (Fora.) - Meu povo, daqui a nada aparece o Imparcial! A assinatura são cinco mil réis por trimestre, pagos adiantados! Número avulso, cem réis! (Entrando.) Daqui a pouco será distribuído o interessante e enérgico periódico o Imparcial! Vem descompostura bravia! Viva a liberdade de imprensa!
VOZES (Fora.) - Viva! viva!
Cena V
Os mesmos, Bitu
BOTELHO - Então já saiu do xilindró, Nhonhô Bitu?
BITU - Olé! que chiquismo!
GUILHERME - Mais dia, menos dia, o senhor é enforcado ali ao Largo da Matriz!
BITU - Não creia nisso, Mestre Guilherme; fui hoje solto pela qüinquagésima; mas é muito provável que me prendam daqui a pouco, logo que se distribua o Imparcial, para ser solto amanhã. E que fazem vocês, infelizes filhos de Maria Angu? Que fazem vocês, que não reagem contra as arbitrariedades de um burlesco fanfarrão, arvorado em autoridade policial? Mas, ora adeus! diz o ditado “o boi solto lambe-se todo”; eu mesmo preso lambo-me bem...
BARNABÉ - Então você é boi?
BITU - Já estabeleci na Câmara Municipal, isto é, na cadeia, o meu escritório de redação.
CARDOSO - Mas o senhor quem é e de onde veio, não nos dirá?
BITU - Pergunta-me bem a quem não lhe pode responder. Todos sabem a minha história, menos eu, que ignoro quem sou, de onde vim e para onde vou. Aqui onde me vêem está um grande homem! Abraço as idéias do século e pugno pela nobre causa da democracia! Em 1867 tentei proclamar uma pequena república na Ilha dos Ratos! Foi a falta de metal sonante que me privou de fazer lavrar a minha santa propaganda...
BARNABÉ (À parte.) - Santa propaganda! nunca vi esta santa na folhinha!
BITU - Mas para que todo este aparato?
BARNABÉ (À parte.) - Um bonito nome! Propaganda!
CHICA (A Bitu.) - Temos hoje um casório.
BARNABÉ (À parte.) - Quando tiver uma filha, hei de chamá-la Propaganda!
BOTELHO (Mostrando Barnabé.) - E o futuro está presente.
BITU - Pois é este paspalhão? Estou passado!
BARNABÉ - Paspalhão é ele!
BITU - Meus sinceros parabéns, mestre Barnabé.
BARNABÉ - Aceito os parabéns, mas engula, engula o paspalhão!
BITU - Pois engulo, essa não seja a dúvida.
BARNABÉ - E não engolisse!
BITU - E com quem se casa este pax-vobis?
BARNABÉ (Entre dentes.) - Insolente!
CARDOSO - A noiva é nossa filha.
CHICA - A filha dos operários da fábrica!
TODOS - Clarinha!
BITU - Clarinha? Ah! é a Clarinha? (Inclinando-se diante de Barnabé.) Nova edição de parabéns!
BOTELHO - A propósito, meu escrevinhador de gazetas; tenho a lembrar-lhe que a honra de nosso futuro genro nos é tão preciosa como a nossa, ouviu?...
CARDOSO - E que se algum pelintra tivesse o desaforo de ... Percebe?
GUILHERME - Tinha de se haver conosco, entende!
OS HOMENS - Com todos nós!
AS MULHERES - E então nós!
BITU - Que querem vocês dizes na sua?
CARDOSO - Simples advertência, Nhonhô. Agora rapaziada, vamos embora!
TODOS - Vamos embora!
Coro
- Arrogante
petulante, etc., etc., (Saem todos.)
Cena VI
[ BITU ]
BITU (Só.) - Com que então ela casa-se... apesar de todas as suas promessas, apesar do juramento, que lhe fiz, de matar-me, se se ligasse ao paspalhão do barbeiro! Olhem que é mesmo um paspalhão! Mas, enfim, louvado Deus, não me hão de faltar consolações, e, para prova, aqui está uma cartinha que acabo de receber pelo correio. (Lendo.) “Senhor Ângelo Bitu. Uma pessoa que vela pelo senhor e se desvela pelo seu bem estar, espera que depois d’amanhã se ache no Largo do Rossio, na Corte, às quatro horas da tarde, junto ao quiosque que fica em frente à Rua do Sacramento, e siga a preta velha que lhe disser: venho da parte daquela que se desvela pelo senhor”. (Declamando.) E com tanta vela estou às escuras! Não importa! Tomarei o trem das dez... Naturalmente esta carta é escrita por uma mulher... (Cheirando a carta.) Isto não é cheiro de homem...
Rondó
— Eu gosto muito da Clarinha,
Mas não devo me entristecer,
Pois quero crer que esta cartinha
Consolação vem me trazer.
Este perfume capitoso
Revela esplêndida mulher,
Que, desejando arder em gozo,
Nos lábios seus, meus lábios quer!
Eu gosto muito da Clarinha,
E ser quisera o esposo seu;
Digam porém, se é culpa minha
Coisa melhor baixar do céu!
— Esta carta misteriosa
Me pôs, confesso, o juízo a arder!
A mão que fez tão bela prosa
Ansioso estou por conhecer!
Eu gosto muito da Clarinha;
Ela, porém, vai se casar...
Passou-me o pé a Sinhazinha,
Hei de lhe o pé também passar!
De mais a mais este mistério
o meu espírito agitou!
Para saber se o caso é sério,
No trem das dez à Corte vou.
Mas deixe estar, Dona Clarinha,
Que, se me passa agora o pé,
Um belo dia será minha,
Ligada embora ao Barnabé!
Cena VII
Bitu, Clarinha, Babu
BITU (Á parte.) - Ela!
CLARINHA (A Babu.) - Ouviste bem? Está alerta!
BABU - Eh, eh, Sinhazinha! Veja o que faz!
CLARINHA - Fica ali na esquina, e, se os vires, vem dizer-me depressa.
BABU - Ah, Sinhazinha! No dia do seu casamento! (À parte.) O que fará depois? (Sai.)
CLARINHA (Indo resolutamente a Bitu.) - Então? Não me cumprimentas pelo meu vestuário?
BITU (Friamente.) - Minha senhora...
CLARINHA - Não gostas de me ver assim vestida?
BITU - Se queres que te fale com franqueza...
CLARINHA - O caso é que a estas horas eu já devia estar casadinha da silva...
BITU (Tristemente.) - Casada...
CLARINHA - Mas achei um pretexto para demorar a cerimônia: escrevi uma carta anônima ao vigário.
BITU - E a cerimônia foi transferida à última hora?
CLARINHA - Infelizmente a carta não produziu um resultado completo.
BITU - E agora?
CLARINHA - É preciso procurar outro pretexto; não achas?
BITU - Se eu achasse, estava tudo arranjado.
CLARINHA - Não te lembras de nenhum?
BITU - O mais simples é este: declaras que morres por mim e que eu morro por ti; que somos dois morrões, como dizia o outro.
CLARINHA - Mas não me havias pedido que guardasse segredo?
BITU - Então não sabes por quê? Porque nada sou, porque não tenho onde cair morto... não passo de um simples jornalista da roça. A propósito: aqui tens o número de hoje do Imparcial. Tem de ser distribuído daqui a pouco. Estou só a espera do entregador; não o mostres por ora a ninguém.
CLARINHA (Guardando o jornal.) - Eu já recusei dezenove pretendentes. Bem sabes que meus pais e minhas mães fazem empenho em meu casamento com Barnabé. Eu não tinha motivo algum para recusá-lo, e, se o recusasse, seria afligi-los. Que me restava a fazer, se devo tudo àquela boa gente?
BITU - Casas por gratidão, não é assim?
CLARINHA - Não! não me caso, mesmo porque, se o fizesse, tu suicidavas-te.
BITU (Tirando uma grande faca.) - E suicido-me!... (Como quem quer cortar o pescoço.)
CLARINHA - Acredito... acredito... guarda a faca! (Fá-lo guardar a faca.) Vê o dilema em que me acho; se me caso, matas-te; se não me caso, desgosto a meus pais e minhas mães. Ah! se minha verdadeira mãe estivesse em meu lugar, outro galo cantaria!
BITU - Quem? Maria Angu?
CLARINHA - Era mulher decidida! Para ela não havia obstáculo possível!
BITU - Como diabo se sairia a velha deste entalação?
CLARINHA - É nisso que estou parafusando...
BITU - Parafusemos...
Dueto
AMBOS — Esse pretexto desejado
Encontraremos, tu verás,
Pois diz um célebre ditado
Que a união a força faz.
CLARINHA — Posso dizer que estou doente
BITU — Isso não pega! Tens tão boa cor!
CLARINHA — Vou procurar coisa melhor.
BITU — Esse pretexto é deficiente.
CLARINHA — Não! Não! Dificultoso está!
Maria Angu teria achado já!
AMBOS — Maria Angu teria achado já!...
BITU — Se o Barnabé, o teu futuro,
Exp’rimentar a força do Bitu?
CLARINHA — Queres dar-lhe?
BITU — Hein? que dizes tu?
Creio que enfim achei um furo!
CLARINHA —Não! Não! Dificultoso está!
Maria Angu teria achado já!...
AMBOS —Maria Angu teria achado já!...
BITU — Ao Barnabé prevenirás,
Para ver se te renuncia,
Que tu, mais dia menos dia,
O enganarás...
CLARINHA — Isso se faz...
Mas sem se dizer.
BITU — Então não sei que possamos fazer!
CLARINHA — Eu tenho um meio extraordinário
Que pode evitar tamanho desgosto:
No momento em que o S’or Vigário
Perguntar se caso por gosto,
Em vez de “sim”, eu direi”não”!
BITU — Tu dirás “não”?
CLARINHA — Eu direi”não”!
BITU —‘Stá dito então!
Ah! que alegria em mim nasce!