José de Alencar
"A Alma do Lázaro"



 

Alfarrábios

 

            A ALMA DO LÁZARO

 

            ADVERTÊNClA

 

         Este alfarrábio, não o devo ao meu velho cronista do Passeio Público. É, como se disse no prólogo, uma escavação dos tempos escolásticos.

 

         Tem ele porém, se me não engano, o mesmo sabor de antiguidade que os outros, e ao folheá-lo estou que o leitor há de sentir o bafio de velhice, que respira das cousas por muito tempo guardadas.

 

         Para alguns esse mofo literário é desagradável. Há porém antiquários que acham particular encanto nestas exsudações do passado que ressumam dos velhos monumentos e dos velhos livros.

 

         Rio de Janeiro, dezembro de 1872.

 

         A ALMA DO LÁZARO

 

         PRIMEIRA PARTE

 

         A ALMA PENADA

 

         Triste irrisão é a glória. Quantos engenhos sublimes, criados para as arrojadas concepções, que ficam aí tolhidos pelo estalão do viver banal, senão sepultos em vida na indiferença, quando não é no desprezo das turbas?

 

         Também quanta ralé, feita para patinhar no pó, que se ala as eminências, insuflada pelos parvos, e se apavona com as galas da celebridade?

 

         E dizer que homens de são juízo labutam ou porfiam após esse fogo4átuo, e deslumbram-se a ponto de esquecerem afetos e bens, sacrificados em má hora à ilusão falaz!

 

         Lá volvem os anos; e um dia vem à flor da terra o crânio que foi um poeta, ou um herói. Quem se importa com o sobejo dos vermes? É um pouco de cal e nada mais. Não tarda que a pata do homem ou do bruto passando por aí triture esse pó, a que animou outrora o sopro de Deus, mens divinior.

 

         O autor do Diário do Lázaro foi um de tantos engenhos, atados à grilheta da miséria Poeta desconhecido, enquanto a sua alma inspirada se derramava em ânsias e prantos, o bestunto de muito zote agaloado lá se estava enfunando com os aplausos, furtados à virtude e saber.

 

         Foi há muito tempo.

 

         Era eu estudante na academia de Olinda. Tinha então dezenove anos, e sentia minhas quedas para a poesia, mas pela poesia plebéia, em prosa estirada, que isso de verso é cousa com que não se conformava o meu espírito. Vão lá medir o pensamento, rimar as paixões?

 

         Muitas vezes sucedia-me nas vigílias do estudo apanhar o eu em flagrante delito de literatura, a idear romances e fantasiar dramas, enquanto lá o outro, o estudante de carne e osso, tressuava às voltas com o Corpus Juris Civilis.

 

         Qual é a alma que nas primeiras expansões da vida, a dilatar-se pelos largos horizontes desta terra do Brasil; a embeber-se nas ondas de luz que imergem essa porção mimosa da criação; a coar-se nas harmonias das brisas que passam pelas florestas, não solta o vôo e se arroja ao céu, embora o calor do sol lhe requeime as asas, precipitando-a num oceano, que é a dúvida!

 

         Era poeta; posso confessá-lo agora que essa veleidade passou de uma feita e já agora não voltará mais.

 

         Tinha a febre da imaginação que delira, envolvendo-se como em uma crisálida, no prisma de suas ilusões.

 

         Olinda, a velha cidade em ruínas, abrigando no seio a mocidade rica de seiva e de vida; o passado com todas as suas gloriosas recordações, e o futuro com as suas brilhantes esperanças; essa aliança misteriosa de dois mundos, de duas gerações, uma apenas em flor, a outra já cinzas, separadas pelo tempo, e reunidas pelas vicissitudes da existência humana, me impressionava profundamente.

 

         A descuidosa jovialidade da vida do estudante, o riso franco, o dito chistoso, a magra ceia que o prazer fazia lauta, o descante livre, tudo isto que em outra cena seria tão natural, me parecia uma profanação no meio desses muros aluídos, desses claustros ermos, sobre esse túmulo de uma população extinta, à face dessa cidade múmia.

 

         Meu gosto era vagar à calada da noute por aquelas ruas solitárias, quando cessava o arruído, quando a palpitação e o resfolgar de emprestada existência já não galvanizava o cadáver da nobre e florescente vila de Duarte Coelho.

 

         De ordinário ia sentar-me no adro desse Convento do Carmo, esqueleto de pedra, cuja ossada gigante o tempo ainda não tinha de todo arruinado. De um lado, sobre a quebrada que faz a montanha, descortinava-se o mar límpido e calmo; de outro erguia-se a massa informe da cidade recortando o seu perfil no azul do céu.

 

         O silêncio que pesava sobre aquela solidão era apenas interrompido pelo esvoaçar dalguma ave noturna no âmbito do claustro, pelo estalido das lendas que se abriam nos muros, e pelo atrito das escaras soltas das velhas paredes.

 

         Às vezes a lua vinha dar a esta cena triste e grave traços fantásticos, e um toque de sua doce e suave melancolia. Os raios da luz pálida e alvacenta, esbatendo-se nas pedras do átrio, enfiando pelas largas frestas, e debuxando nos claros sombras esguias, criavam mil formas incertas e vacilantes.

 

         Era por momentos como um vasto lençol que amortalhava as ruínas do antigo edifício; logo depois afiguravam-se vultos de carmelitas cobertos da alva estamenha, a percorrer o claustro solitário, e a murmurar as sagradas litanias; alguma vez parecia-me ver passar diante de meus olhos uma dessas lâmias, de que a imaginação popular em outras eras povoou os templos abandonados.

 

         Aí as recordações históricas, dormidas sobre este solo, em cada pedra que tombara das antigas construções, acordavam umas após outras no meu espírito, e me faziam reviver na memória os dous séculos que tinham volvido sobre as diversas gerações de homens e de casas, de que apenas restavam alguns nomes e alguns muros.

 

         O mar a perder-se no horizonte lembrava-me a flotilha de Duarte Coelho, o    donatário de Pernambuco, aportando aquela costa em 1535, e trazendo a seu bordo a colônia que nesse mesmo ano fundou a vila de Olinda, com o auxílio dos chefes índios, Miraubi, Itagipe e Itabira, e das suas tribos selvagens. Lembrava-me a grande armada holandesa comandada por Lecoq, que surgiu a 14 de fevereiro de 1631 diante da cidade, e em alguns dias assenhoreou-se dela com fácil vitória, pelo terror que se apoderou dos habitantes, apesar dos esforços de Matias de Albuquerque.

 

         Lembrava-me os combates navais das forças espanholas e portuguesas contra os holandeses, especialmente o de 12 de setembro de 1631 em que Pater, depois de sete horas de peleja, batido por Oquendo, abandonado da tripulação em sua nau presa das chamas, preferiu à salvação, que tinha por desonra, uma morte gloriosa, e, envolvendo-se na bandeira nacional, sepultou-se no oceano, único túmulo digno de um almirante batavo.

 

         O istmo, os Fortes do Mar e de São Jorge, o antigo Colégio dos Jesuítas e o Convento de São Francisco, recordavam a resistência heróica dos poucos que não abandonaram o seu general na defesa da colônia, mas que afinal foram obrigados a ceder ao número.

 

         Os edifícios em ruína ainda tinham gravados nos seus muros os vestígios do incêndio que em 1631 os holandeses lançaram à cidade, quando reconheceram a impossibilidade de conservá-la e a necessidade de concentrar-se no povoado do Recife. Além, a várzea que se estendia pela margem direita do Beberibe, semeada de quintas e de jardins, apresentava ainda o sítio desse Arraial do Bom Jesus, centro da resistência heróica, com que durante o espaço de cinco anos os pernambucanos fizeram esquecer por feitos e ações gloriosas, dignas da idade homérica, um momento de fraqueza e temor na rendição da colônia.

 

         Enfim, aquela solidão e silêncio testemunhavam a decadência de Olinda, que a fundação da cidade Maurícia, mais do que o incêndio, apressara, sobretudo depois que a guerra civil dos Mascates roubou-lhe, para dar à sua rival, a primazia como capital de Pernambuco.

 

         E quando todas essas recordações tinham voado e revoado por meu espírito, interrogava os muros do convento e os cômoros de pedras; como para arrancar-lhes o segredo de algum fato interessante de que se perdera a tradição, ou a palavra de algum drama desconhecido, que o coração naturalmente representara a par com acontecimentos políticos.

 

         A guerra, o incêndio, a luta das raças, as revoluções, não passaram por ai sem o cortejo infalível das paixões humanas. Os feitos de armas, as ações de heroísmo, o morticínio, o crime e a virtude em suas enérgicas manifestações, deviam prender-se necessariamente por um fio misterioso a alguma história de amor, ou a algum episódio de vingança.

 

         Era justamente essa crônica do coração, esquecida pelos analistas do tempo, que eu pedia àquelas rumas.

 

         Quantas vezes não sondei esses destroços de alvenaria, essas paredes fluas, procurando, nem sei o que, uma memória, um nome, uma inscrição, uma frase que me revelasse algum mistério, que me dissesse o epílogo de alguma lenda que a imaginação completaria!

 

         Mas o velho convento ficava mudo e impassível: os muros, levados pela chuva e pelo vento, estavam descarnados; as pedras já não conservavam os vestígios da mão do homem; e a eloqüência do silêncio, que plainava sobre o templo, dizia apenas a ruína.

 

         Cansado, extenuado de corpo e espírito, partia-me depois de duas ou três horas de meditação e de investigações inúteis, trazendo ainda para a insônia as impressões várias, as reflexões profundas que despertava essa evocação do passado.

 

         No dia seguinte voltava; não me podia resignar à idéia de que esse claustro não guardasse para mim alguma revelação poética; tinha um pressentimento, que mais tarde devia realizar-se, de um modo inesperado.

 

         Eis como.

 

         II

 

         Uma noite, seriam onze passadas, estava eu sentado no adro do convento. Fazia luar, porém o céu nublava-se; o ar era pesado, o mar sem ondulações arquejava como opresso; a chama fosforescente do relâmpago iluminava a fímbria das nuvens escuras. Uma grande tempestade estava iminente.

 

         Enquanto a natureza preparava e dispunha a cena em que os elementos iam representar, estive embebido a contemplar os progressos da borrasca; mas quando a primeira gota, umedecendo as lajes, anunciou-me a chuva, imediatamente e como por encanto acalmou-se a sede ardente de poesia e mistério que me devorava.

 

         Ergui-me, com ânimo de ganhar a casa sem demora.

 

         Mas os joelhos dobraram-se, e um fio de gelo correu-me pelo corpo, arrufando a pele e erriçando-me os cabelos; foi-me preciso grande esforço para dominar-me, e vencer o susto pueril que me tomara de surpresa.

 

         Tinha ouvido uma voz trêmula que rezava cantando à surdina uma ladainha de igreja; e pareceu-me que afinal chegara a ocasião de ver surgir diante de mim um desses fantasmas que nas minhas extravagantes elucubrações, eu tantas vezes evocara.

 

         Revesti-me de coragem; voltei-me para o interior do convento, e adiantei-me alguns passos na direção da voz que murmurava sempre as suas rezas de cantochão.

 

         De repente, numa paveia de luz que enfiava por larga brecha do teto prestes a desmoronar-se, destacou um vulto de alta estatura, envolto numa túnica preta e roçagante, sobre a qual a longa barba branca brilhava com os reflexos da lua. Avançava lentamente, apoiando-se sobre um báculo que trazia na mão esquerda.

 

         Julguei... Nem sei o que julguei, de tantas e tão encontradas que foram as idéias que me assaltaram então. Entre outras pareceu-me ver o fantasma de um dos antigos priores do Carmo, acabando de oficiar em pontifical, e tornando à sua cela.

 

         Recuei instintivamente; e com esse movimento projetando-me no claro de uma janela, fui percebido do vulto, que por sua vez também estacou, soltando uma exclamação de espanto ou de surpresa.

 

         Decorreu um instante em que ambos, com os olhos fitos, nos examinamos reciprocamente; o que se passava no seu espírito não o podia adivinhar; o que se passou no meu, qualquer, ainda o mais destemido, pode bem supor. Afinal o vulto endireitou para mim, e veio aproximando-se; cosi-me com a parede, e esperei-o.

 

         Quando ele chegou a dois passos, conheci o meu engano, e estive para soltar uma gargalhada, escarnecendo de mim mesmo. O meu fantasma era apenas um velho pescador; a túnica preta e roçagante uma rede de malhas; e o báculo de prior não passava de um remo de canoa.

 

         - Bendito e louvado seja o Senhor! foi a saudação que me dirigiu.

 

         - Deus lhe dê boa-noite, respondi eu já de ânimo sereno.

 

         - Para o servir, e a vos'senhoria no que mandar deste seu servo.

 

         - Obrigado, meu velho.

 

         Essa cortesia antiga, inspirada na religião, e a voz grave e arrastada do velho, junto à expressão doce de seu rosto, me excitaram viva simpatia.

 

         - Vai hoje muito tarde para a pesca? disse-lhe eu reatando o fio do diálogo.

 

         - Quem sabe quando irei? A tempestade não tarda conosco. Cuidei que adiantava saindo mais cedo, e afinal de contas atrasei.

 

         - Mora longe daqui?

 

         - Lá embaixo! respondeu apontando para a praia que se prolonga ao norte.

 

         Os relâmpagos fuzilavam amiúde; e a chuva começava a bater no telhado.

 

         - Então tenha vos'senhoria boa-noite; vou ver se me arranjo para passar o aguaceiro, que promete durar.

 

         - Ah! veio abrigar-se aqui? E não tem medo deste teto esburacado e destas paredes rachadas?

 

         - Será o que Deus for servido. Não é a primeira vez que me tem sucedido ficar aqui boa parte da noite, e até hoje nenhum mal disto me veio.

 

         - Ora, diga-me uma cousa?...

 

         - O que é, meu senhor?

 

         - Por que cantava baixinho uma... ladainha, se não me engano?

 

         O       velho sorriu com brandura.

 

         - Era o terço. Minha mãe me recomendou que cantasse sempre que houvesse tempestade; e isto me ficou desde menino.

 

         Estava tudo explicado. A minha visão fantástica tinha-se desvanecido, deixando a realidade do encontro simples e natural com um pescador que fora ao convento abrigar-se da chuva.

 

         Pensei em recolher-me.

 

         - Sabe por que lhe fiz esta pergunta?

 

         - Vos'senhoria me dirá, respondeu o velho.

 

         - Pois confesso-lhe que me causou um grande susto. Quando ouvi a sua cantiga, e o vi de longe no meio destas ruínas, tão fora de horas, cuidei que era... Acredite! Uma alma do outro mundo.

 

         - Ainda sou deste, graças a Deus, disse o pescador sorrindo, bem que por pouco tempo.

 

         - Há de sê-lo por muitos anos.

 

         O velho abanou a cabeça.

 

         - Os oitenta já lá vão. Mas deixe-me dizer-lhe... Também a mim, quando o enxerguei, no que a vista me ajuda, sucedeu-me quase a mesma cousa.

 

         - Também causei-lhe susto?

 

         - Susto, não; nesta idade a gente já não se teme, senão daquele que está no céu para nos julgar a todos; porém assim um espanto, como se visse uma pessoa que não se espera mais ver, aqui embaixo.

 

         - Já falecida?

 

         - Senhor, sim.

 

         - Quem?

 

         - Oh! o senhor ainda não era nascido, quando isto foi.

 

         - Há muitos anos então?

 

         - Se eu já lhes perdi a conta!

 

         - Conte-me isso.

 

         - São cousas velhas que já não lembram a ninguém. Levariam muito tempo

 

         - Não faz mal.

 

         - Melhor é que vos'senhoria se guarde da chuva que aí está de pancada; eu vou fazer outro tanto.

 

         Se eu mesmo perdia uma história do século passado, uma anedota de cabelos brancos, uma antigualha qualquer, depois de tê-la procurado inutilmente durante mais de cinco meses!

 

         - Por mim, não tenha cuidado, respondi: trate de acomodar-se, e se não tiver sono, conversaremos.

 

         - Sono de velho é o descanso do corpo. Venha vos'senhoria já que assim o quer.

 

         Chegamo-nos a um dos ângulos do velho convento, onde algumas paredes interiores formavam outrora uma sacristia: o pavimento do primeiro andar não tinha ainda desabado nesse lugar.

 

         O velho enrolou a rede de que fez uma espécie de almofada; tirou fogo do fuzil e acendeu o cachimbo, enquanto eu, sentado sobre um troço de parede, e devorado pela curiosidade, preparava o meu cigarro.

 

         III

 

         Começou o velho:

 

         "Fazem, se quer que lhe diga, não sei quantos anos. Era eu tamanino como esta minha pá de remo.

 

         "O pai vivia da pesca, como o avô; porque isto de pescador parece que é oficio de família, que vai passando de filho a neto. Quase todas as noites ele me levava consigo quando ia ao mar; e pequeno como era sabia arrumar a canoa e botá-la ao largo.

 

         "Já então costumava o pai na volta da pescaria descansar aqui. Punha a canoa em seco; deixava passar o resto da noite, e lá pela madrugada íamos vender o peixe ao Recife, porque em Olinda, afora a clerezia, tudo o mais era miuçalha.

 

         "Havia ali assim no fundo do convento, bem na praia, uma casa velha, tão velha que estava cai, não cai. Também os donos, ninguém mais sabia deles. Nem viva alma ali morava.

 

         "Uma noite, lá do largo, a gente viu uma luz acesa na janela da banda do mar. Eram que horas! Não tardava um instantinho que amanhecesse.

 

         "- Estás vendo, Tonico?"

 

         A voz do pescador tornou-se trêmula; e á tênue claridade da lua encoberta vi-o que enxugava com a mão rude e calosa uma lágrima de saudade.

 

         - Meu nome de bautismo é Antônio. Porém, o pai e a mãe chamavam a gente Tonico.

 

         Essa emoção de um velho de oitenta anos, recordando-se do apelido familiar da meninice, essa memória poderosa do coração que através de uma longa existência cheia de vicissitudes e trabalhos refletia com todo o colorido os quadros singelos da infância, tocou-me.

 

         Achei sublime isto, que outros acharão ridículo talvez.

 

         O velho continuou, passada aquela primeira emoção:

 

         "Eu nem respondi ao pai. Estava tremendo.

 

         "- Quem andará ali?... Há que tempos a casa velha está abandonada!... Não seja...

 

         "O pai fez o pelo sinal Eu rezava baixinho uma Ave-Maria.

 

         "- Nossa Senhora de Nazaré nos defenda. Rema, rapaz, que o vento escasseou, e a vela está bamba!

 

         "A luz de vez em quando apagava-se como farol que naquele tempo inda nem sonhava...

 

         "Quando a gente chegou em terra, conheceu que a luz saía mesmo da janela da casa, e que o motivo de sumir-se e aparecer era uma figura preta que passava e tornava a passar por diante, como um homem que ia e vinha.

 

         "Mas, havia um poder de anos, a casa não tinha morador, nem criatura de Deus que ali entrava.

 

         "Na outra noite, na outra e na outra, sempre a mesma cousa, tanto que o pai não se pôde mais ter, e foi ao. sr. bispo e lhe contou tudo. O santo homem sossegou a gente: disse que era um pobre moço doente que veio morar na casa velha, porque todos fugiam dele, com medo da doença."

 

         - Que doença? perguntei eu.

 

         - O moço era como o que foi ressuscitado pelo Cristo!

 

         - Lázaro?...

 

         - Senhor, sim. Agora quantos andam por aí como ele? Mas naquele tempo não era assim: a gente pensava que aquilo era uma praga.

 

         "Meu pai também cuidava, mas tinha bom coração; e ficou mais descansado sabendo quem era o morador da casa velha, do que antes quando pensava que ali andava cousa de bruxa.

 

         "Uma vez... já se tinham passado quantos dias depois da luz aparecida! Era pela madrugada; nós estávamos a tirar a canoa para terra. Eis senão quando vimos o moço em pé no adro do convento, como inda agora vi o senhor. E isto me fez alembrar!...

 

         "Esteve um pedaço bom; depois veio caminhando mansinho para cá.

 

         "O pai quis fugir. Ele que deu pela cousa, parou, mais que depressa, e foi dizendo:

 

         "- Não tenha medo... Não fuja que eu volto.

 

         "Disse estas falas, assim com uma voz tão doce e tão penada que o pai teve dó dele, e ficou com vergonha:

 

         "- Não fujo, não. Precisa de alguma cousa? Diga!...

 

         "- Não preciso de nada!... Saí porque este vento me faz bem!... Estou queimando! Não o tinha visto, senão... Sei que não devo chegar-me para os outros.

 

         "- A moléstia é para a gente ter medo; mas também falar só de longe, não faz mal, disse o pai.

 

         "- Oh! há quanto tempo que não troco uma palavra com um ser humano!

 

         "- E está-lhe doendo muito?

 

         "- Horrívelmente!... Porém o que dói no corpo é o menos!

 

         "Ele se assentou e nós continuamos a enxugar a canoa, sempre de olho nele.

 

         "- É para vender o seu peixe?...

 

         "- É senhor, sim.

 

         "Foi ele, e disse então como um pobre que pede esmola:

 

         "- Se eu quisesse comprar um?... "O pai ficou arrepiado.

 

         "- Não sei!... dizem que a gente não deve tocar.

 

         "- Escute!... Deite o peixe ai, na pedra, e fuja com o pequeno. Eu vou buscá-lo e deixo o dinheiro. Deste modo...

 

         "- Não precisa! Ai tem o peixe. Quanto ao dinheiro há de carecer.

 

         "Meu dito, meu feito. O moço foi, e deixou na pedra uma moeda de tostão. O pai, quem viu! Nem lhe quis tocar. Mas o menino bem se importa com doença! Tirante das almas d'outro mundo, não tinha medo de nada.

 

         "A lembrou-me que a mãe precisava de uma vela de cera benta. A dela, de tanto acender quando nós andávamos no mar e ventava rijo, já estava num toco. Mal que o pai começou de passar pelo sono, fui eu devagarinho, e zás! apanhei o dinheiro; lavei bem lavado, e escondi no seio para que ninguém visse.

 

         "No outro dia comprei a vela para a mãe. Foi preciso pregar uma mentira. Primeira e. derradeira. Era para não assustar a gente em casa. Deus deve me ter perdoado pelo motivo que foi."

 

         O velho fez uma pausa.

 

         - Chove a valer!... Mau tempo de garoupas!...

 

         - Talvez estie ao amanhecer.

 

         - Se o vento rondar... "Mas naquela noite, que eu dizia, quando o moço saiu, já o pai estava dormindo. Vou eu, dou-lhe. o peixe como da véspera, e ele deixou o dinheiro na pedra. A gente naquela idade gosta de saber tudo. Eu quis ver o que ele estava fazendo acordado até tão tarde, e pus-me a espiar pela fresta da porta. Jesus! O corpo me tremia que nem linha d'anzol quando o peixe fisga!

 

         "Ele... o moço, estava assando o peixe. Depois comeu sem farinha, sem nada. Bebeu água, só. Vai por fim, lava as mãos e começa de escrever num livro que. estava na caixinha..."

 

         - Que caixinha?... perguntei, interrompendo o velho.

 

         - A caixinha de folha! retrucou surpreso da pergunta.

 

         - Já sei...

 

         - Ora! onde estava eu com a cabeça. Cuidava que já tinha dito... Mas não! Era uma caixa, assim por este tamanho. Também ele não tinha mais trastes senão aquele.

 

         "Tive tanto dó... Apanhei o dinheiro, lavei como na outra noite, mas foi para comprar farinha. Trouxe ás escondidas do pai, que ralhava-me se soubesse.

 

         "Não sei como foi; mas no cabo duma semana eu estava tão amigo dele, que levávamos a conversar toda a noite de enfiada, e assim, perto um do outro. Tudo que precisava, era eu que comprava. A ele não vendiam: tinham medo do dinheiro. E o coitado, antes queria vela para estar escrevendo, que o bocado para comer.

 

         "Como são as cousas... Já entrava pela casa dentro, sem pinga de medo. Queria-lhe bem a ele; também ele me queria. Um dia perguntei como se chamava.

 

         'Sabe que respondeu?

 

         "- Não tenho nome!... Todos me chamam leproso.

 

         "- Mas seu nome de batismo?

 

         "- Era Francisco.

 

         "Outra vez, por meus pecados, disse:

 

         "- Por que passa todo o santo dia e mais a noite a escrever? Isto faz mal.

 

         "Que olhos que me deitou! Ainda me alembro.

 

         "- Estes livros são a minh'alma. O que tu vês em mim, Tonico, são os ossos que a lepra vai roendo.

 

         "Cruzes! Tive um medo... das falas e dos olhos com que me olhou.

 

         "E foi guardando os livros e desatou num pranto, num pranto... que. parecia um menino a chorar.

 

         "Por esse tempo a gente de Olinda já andava alvoroçada com a estada do moço na casa velha. Diziam, que falso testemunho! que ele andava empestando a cidade. O rebuliço foi crescendo, e um bando saiu a gritar pelas ruas, e foi e requereu ao juiz do povo que pusesse o leproso para fora, senão haviam de mandar procurador a El-Rei.

 

         "Dois dias, com tanto mar e vento que fez, o pai não saiu.

 

         "Fiquei banzando com a idéia que o pobre moço não tinha quem lhe comprasse a comida. De noite me veio um sonho, e me acordei soluçando.

 

         "- Que tens, Tonico?... De que choras?... perguntou minha mãe.

 

         "- Ele não tem que comer...

 

         "Isto me saiu sem querer, quando ainda estava tonto de sono.

 

         "- Ele quem?...

 

         "Vi que era sonho e calei a boca; porém não preguei mais olho.

 

         "Logo na outra noite, enquanto o pai descansava, corri ao quarto do moço; a porta estava cerrada; mas havia luz dentro.

 

         "Ele estava sentado junto da mesa com a testa encostada na caixa onde guardava os livros. A vela ia-se acabando. Pensei que estava chorando como às vezes costumava, e levantei a cabeça dele com pena.

 

         "Santo nome de Jesus! Soltei um grito! Estava morto! E tinha morrido de tome.

 

         "Quando foram à casa velha para deitá-lo fora, só acharam o corpo que enterraram na praia. A gente da cidade ficou descansada.

 

         "Mas eu, quem via que podia dormir! Era um sonho atrás do outro. Aqui então! mesmo acordado, estava vendo a cada passo aquele vulto de preto com seu rosto triste. Ele que me aparecia tão amiúdo, tinha cousa que me pedir.

 

         "O que era? .~.. Pus-me a parafusar!... Vai senão quando me alembrou aquele dito dos livros:

 

         "São a minh'alma."

 

         "E não era outra cousa! O corpo que saia da terra, é que a alma andava penando por este mundo! Queria que enterrasse a caixa para seu repouso e descanso dele.

 

         "Porém eu entrar mais na casa! Quem viu!

 

         "Só de me alembrar, os cabelos espetavam, e corria-me pelas costas um suor tão frio.

 

         "Foi Deus, que as paredes de fora caíram; e então um domingo, depois da missa, com os outros rapazes que andavam brincando na praia, fomos e puxamos a caixa; com uma vara cavou-se um buraco e enterrou-se."

 

         - Aonde? perguntei eu com ansiedade.

 

         - Por fora dessa parede em. que o senhor está encostado. Meu pai tinha-se deitado mais longe; e eu depois daquela noite não me animava a sair de perto dele.

 

         "Quando acabei de enterrar a caixa, pareceu. que me tiravam um peso do coração. Ele ainda me apareceu uma vez. Foi para agradecer... Depois não voltou.

 

         "Deus tenha sua alma."

 

         IV

 

         O velho tinha acabado a sua história, que eu ouvira com uma atenção religiosa:

 

         - Por isso é que tanto me alembrei dele!... Foi ali mesmo, assim todo vestido de preto, que me apareceu pela primeira vez.

 

         Não escutava mais o pescador; estava cheio da idéia de possuir os manuscritos que me faziam palpitar, como se fossem um tesouro. E eram realmente um tesouro para mim.

 

         - Diga-me!.. É capaz de acertar com o lugar em que enterrou a caixa?

 

         - Com os olhos fechados!... Os anos que foram já apagaram muita cousa, mas aqueles tempos de menino, parece que estão voltando!

 

         - Pois venha mostrar-me.

 

         O velho ergueu-se. Saímos do convento e beiramos a parede que olha o mar. Depois de alguns passos, ele parou.

 

         - Por que é que o senhor quer saber?

 

         Hesitei; adivinhava o escrúpulo do velho.

 

         - Por simples curiosidade.

 

         - É aqui! disse ele abaixando a mão.

 

         - Está certo?...

 

         - Estou vendo!

 

         E o pescador ajoelhou-se e fez uma oração. Compreendi que ele respeitava aquela cova como se fosse realmente uma sepultura.

 

         Não perturbei o seu recolhimento, e esperei que terminasse.

 

         - Empresta-me o seu remo?

 

         - Para quê? perguntou-me estremecendo.

 

         - Para desenterrar a caixa.

 

         - Isso nunca!

 

         - Por quê?... Pensa que esses livros são realmente a sua alma?

 

         - Ele disse.

 

         - Mas Deus não quer que a alma fique na terra como o corpo; ela deve voltar ao céu. É o que desejo fazer.

 

         O velho abanou a cabeça.

 

         - Ouça!... Se a alma desse moço está nos livros,. para que ela volte ao céu é preciso que entre em outras almas vivas. Aquilo que ele escreveu deve ser lido...

 

         Foi-me preciso aceitar a crença do velho que era muito profunda, para ser abalada.

 

         Procurei tirar dela argumentos que o convencessem de que não entrava nas minhas intenções cometer um sacrilégio.

 

         O       pescador refletiu.

 

         - Mas se isso é verdade, por que razão ele me pediu que enterrasse a caixa?...

 

         Tive uma inspiração.

 

         - Quando ele morreu - respondi - ninguém se animaria a tocar no que lhe pertencia, com receio da moléstia. Os livros ficariam perdidos... Por isso pediu-lhe que os enterrasse. Mais tarde devia alguém achar...

 

         - Há de ser isto!

 

         Cavamos três palmos; creio que se abrisse o túmulo de um ente que me fosse caro, não sentiria as emoções por que passei naquele momento. O pescador, na ingenuidade de sua crença, tinha razão: era a alma de um homem, talvez de um poeta, que estava ali sepultada.

 

         A chuva, que caíra a cântaros, amolecera o terreno, e facilitara o trabalho:. depois de um quarto de hora de escavação, o pescador tirou do chão uma caixa de folha, que teria dois palmos de comprimento sobre um e meio de largo, e já inteiramente oxidada.

 

         Despedi-me. do velho, a quem fiz aceitar a muito custo a pequena espórtula que comportavam as magras economias do estudante, e carregado com o meu tesouro, recolhi-me.

 

         Ao despedir-me, o meu companheiro pediu-me um favor.

 

         - Quando o senhor abrir a caixa, se pudesse. ser...

 

         - Fale! Não tenha receio.

 

         - Eu queria saber o que ele escreveu... Talvez não entenda!

 

         - Fique descansado.

 

         Ensinei-lhe a minha casa, onde ele foi muitas vezes, e onde passou horas e horas, a escutar a leitura que eu lhe fazia de alguns trechos dos livros.

 

         Chegando a casa, não dormi; eram quatro horas da madrugada, e não tinha sono. Abri, ou antes arrombei a caixa, e achei dentro três volumes in-fólio, cobertos de pergaminho, uma pequena mecha de cabelos grisalhos, uma flor seca que desfez-se em pó quando a toquei, e uma bolsa com algumas moedas de cobre.

 

         Dos volumes in-fólio; dois escritos de princípio a fim com uma letra grossa e trêmula, continham alguns episódios da guerra holandesa, e da crônica dos tempos coloniais; o seu autor lhes dera o título singelo de - Histórias que me Contou Minha Mãe.

 

         O       terceiro volume era um diário, escrito com pequenas interrupções; não tinha titulo, nem fora concluído.

 

         Estavam todos em tal estado que me foi preciso copiá-los á pressa; e assim mesmo em muitos lugares as letras com a umidade tinham-se apagado de modo que só pelo sentido pude adivinhar as palavras.

 

         São estes livros que hoje começo a dar a estampa.

 

         Talvez a alguém cause reparo porque vinte e tantos anos decorreram e só agora. me resolvi a publicá-los?

 

         A razão é simples.

 

         Quando pela primeira vez li o diário do Lázaro, convenci-me que o estilo, embora simples e terso, carecia de ser retocado ao gosto da época; e dei-me a esse trabalho. Apenas vesti de novo a primeira parte, me arrependi;. quis-me parecer que era uma profanação tirar ao pensamento do escritor a sua frase rude às vezes, mas sempre expressiva: rasguei o que tinha escrito para escrever de novo.

 

         Demais, achava a primeira parte do livro tão triste a cortar-me o coração, que receava publicá-la. Ao mesmo tempo que não me sofria a consciência deixar ignorada a memória do escritor, cujas obras queria dar à estampa: pois essa parte de que falo é o diário.

 

         Foi então que a ambição me veio tomar no melhor dos sonhos da mocidade e conduziu-me ao través de uma vida sempre agitada à quadra dos desenganos, na qual me deixou isolado, mas tranqüilo.

 

         Voltei então para os meus estudos literários, reli com imenso prazer os meus esboços de obras mal alinhavadas, os meus versos truncados, e revi a minha juventude naquelas relíquias das primeiras inspirações.

 

         Entre esses papéis velhos deparei com a cópia ou versão do antigo manuscrito. Lembrei-me do que prometera ao velho, e senti como um remorso de haver por tanto tempo conservado no esquecimento a alma desse ignoto poeta do século passado.

 

         Este livro é pois um voto.

 

         SEGUNDA PARTE

 

         O DIÁRIO

 

         1752

 

         7        MARÇO

 

                  

 

         Estou só no mundo.

 

         Minha mãe morreu... Pobre mãe!... Antes assim! Devias sofrer muito a ver teu filho asco e horror da gente... Mas por que me deixaste neste vale de lágrimas?

 

         Minha alma morreu contigo. Vivem as úlceras que devoram estes restos de corpo, sobejo da enfermidade terrível! Sem ti, que me consolavas, que sofrias comigo da minha angústia, que vai ser de mim neste exílio?...

 

         Resta-me uma irmã.

 

         Foi... Agora tem outra família. Ela me quer, bem sei, e com amor. Mas sou um estranho para os seus. Meto-lhe medo. Não por ela... Por seus filhos. E tem razão.

 

         Tu só, mãe, não tinhas nojo de meu hálito de peste! Tu só não te arreceavas do fogo que me abrasa o sangue! Tu só não me abandonaste enquanto o Senhor não te chamou!

 

         Devia chamar-nos a ambos.

 

         A quem direi agora a minha dor, se tu não estás aqui para ouvi-la? Ao vento, para levá-la á gente que me escarnece?... Sim, ao vento! Fossem peçonha minhas palavras, que eu as cuspiria sobre eles sem dó, como dó não tiveram do mísero, de mim.

 

         Perdoai-me, Senhor!... Menti! Eles não me fizeram nenhum mal. Que culpa têm do castigo que pesa sobre o infeliz?...

 

         Quando estavas ao meu lado, mãe, eras alívio ao meu padecimento. Meu gemido ia ao teu coração; e por não te ver sofrer, eu sofria menos.

 

         Vi-te pela última vez.

 

         A terra abriu-se para roubar-te aos meus braços. Se não me tivessem arrancado!... Eu dormiria em teu seio o último sono como dormi o primeiro, feliz e tranqüilo.

 

         Este anel de cabelos é tudo que me resta de ti. Mas tu vives em minha alma.

 

         Eu te sinto em mim. Falo-te; me respondes.

 

         9 DE MARÇO

 

         Que profunda é a solidão desta casa depois que tu não a        habitas comigo!

 

         Parece-me um túmulo.

 

         Na sepultura em que descansas na Igreja de São Pedro Gonçalves, não sentes nem o peso da terra, nem o prurido dos vermes. Tua alma branca e pura, goza no seio do Criador. Na minha sepultura, eu me sinto asfixiar pelo silêncio, que me é mortalha. Quando alguma vez o burburinho do mundo penetra aqui, é para despertar a modorra da agonia.

 

         A noite desce, como a lousa fria e negra. Ah! se com ela me trouxesse o repouso!... Mas é só morte ao coração, à fé, à crença. A dor vive em meu cadáver.

 

         Quando tu aqui estavas, vinham ainda ver-te algumas velhas amigas da infância. Tão santa cousa é a afeição!... Vencia o receio e a repugnância que eu lhes inspirava.

 

         Agora, ninguém virá. Luíza não pode, nem deve. É minha irmã; mas é mãe. Não o fora, que eu lhe pediria para não vir. Sofreria mais da compaixão dela, que não sofro do meu suplício.

 

         Amigos, nunca os tive. Parentes já não os tenho. Depois que morri, não me conhecem... Sim! conhecem-me, quando me fogem.

 

         Maria, a nossa escrava, é o único ser humano, com quem falo. Ao menos tem a forma... Deve existir uma alma ali dentro.

 

         10 DE MARÇO

 

         Depois que me deixaste, mãe, sinto um consolo imenso em escrever. E como se te falasse

 

         Comecei hoje a tirar sobre o papel, do coração onde as tenho intactas, aquelas bonitas histórias, que aprendeste de meu avó. Foram-me bálsamo, ouvidas de teus lábios nas horas da vigília; porque o espírito ia-se nelas, e o fogo queimava só uma carne insensível. São-me conforto agora contra o desânimo que me invade. Escrevendo-as, estou contigo. A ternura que derramaste nelas é um santo óleo. Vaza-me do seio, onde o verteste, e unge-me Tuas palavras, escuto-as ainda. Deu-lhes tua alma uma voz, para que murmurem assim ao meu ouvido?

 

         A recordar o que me contaste, vivo nesse tempo bom de fé e heroísmo. Não me admiram feitos grandes que houve então. O espírito respirava na estima do povo, como se respira o ar na atmosfera, um ressaibo de nobreza. Era mãe a pátria, que defendiam filhos dedicados. Foi depois que a fizeram senhora, mal servida por fâmulos interesseiros.

 

         Mal de mim que não nasci naquele tempo!... Não me negariam o direito de morrer combatendo pela independência da minha terra. O soldado que a todo instante via a morte, não se temeria do contacto de um pobre enfermo... A bala do arcabuz ou o golpe da lança, é mais terrível do que a lepra.

 

         Nesta era o soldado fez-se aventureiro. Joga a vida pelo lucro. Se me oferecesse por companheiro seu, me haviam de repelir. O mais bravo fugiria de mim! Que horrível anátema trago impresso na fronte!...

 

         11 DE MARÇO

 

         Luíza veio ver-me. Tarde, bem tarde da noite, para evitar suspeitas.

 

         Parece que o mundo reputa crime consolar uma irmã a seu irmão aflito! Mas o irmão é um leproso!... Seu marido lhe perdoaria talvez se ela voltasse com o lábio manchado pelo beijo adúltero. Nunca, se esse lábio tivesse bafejado a face ardente do mísero enfermo.

 

         Deliro!...

 

         Esta visita fez-me mal. Sou injusto. Luíza me ama; não teme o contágio, ou se o teme, seu amor por mim é mais forte. Quis abraçar-me!... Fui eu que a repeli!... a ela, o único ente que não me foge!

 

         Amo-o eu mais do que a ti, mãe, para ter essa coragem?...

 

         Não! É que tu me pertencias, como eu a ti. É que nos tínhamos dado um ao outro, naturalmente, sem esforço, sem sacrifício. É que eu vivia nos teus braços, como tinha vivido nas tuas entranhas, ligado pelo mesmo elo, o teu amor.

 

         Luíza veio para comunicar-me a sua resolução, dela e de seu marido. Não quer a parte que lhe cabe da nossa pequena herança; deixa-me tudo, porque necessito mais, e não posso trabalhar.

 

         Recusei e não lhe agradeci.

 

         Como rala essa compaixão! Tem-me por um homem inútil, incapaz de ganhar o sustento para o corpo. Por fim ela pensa bem. Quem aceitará a obra tocada por minhas mãos, e impregnada do meu suor?

 

         12 DE MARÇO

 

         Passei toda a manhã a ensinar a Maria as orações que aprendi em teu colo. Não as compreende, nem sabe repeti-las comigo! Que sono profundo dorme essa alma! Nada a perturba. O corpo ali move-se pelo instinto, ou talvez pelo hábito...

 

         Contudo é uma criatura humana. Ouve... E eu sinto um prazer inconcebível em falar a alguém!...

 

         16 DE MARÇO

 

         Esses dias tenho levado a escrever o meu livro.

 

         Dei-lhe um título bem mesquinho para os outros, que não lhe sabem a significação; mas bem gentil e, sobretudo, bem verdadeiro para mim.

 

         Chamei-o:     Livro das Histórias que me Contou Minha Mãe.

 

         Tenho delas acabada a primeira. É a história de D. Maria de Sousa. Também ela foi mãe e sofreu por seus filhos; também ela foi grande pelo heroísmo, e forte pela constância.

 

         Mas como tu que vinte anos acompanhaste a tortura incessante daquele que geraste para tua pena, sem nunca soltar uma queixa; como tu, não quero que tenha existido ou possa existir outra mãe.

 

         Pesa-me que não estejas aqui ouvindo-me para ler-te o meu livro! Acho-o melhor do que nunca esperei de mim. Acho-o bonito. Tem alguma cousa daquela singeleza dos teus contos.

 

         Mas que estou eu dizendo?... Tu me ouves! Tu leste no meu espírito, muito antes que as palavras se formassem, e que a pena as lançasse no papel!

 

         17 DE MARÇO

 

         Estive a refletir num projeto. É talvez uma loucura. E o que são todos os projetos do homem, miserável criatura, de quem zomba o tempo e a fortuna?

 

         Lembrei-me de dar à estampa o meu livro.

 

         Talvez naqueles que o lessem, excitasse eu alguma simpatia. Não me conhecendo nem sabendo o meu nome, a repugnância que inspiro não mataria o interesse pelo autor obscuro e ignorado.

 

         Tenho tanta sede de afeição, depois que a tua me deixou vazio o coração!... Sentir-me querido, ainda, mesmo de longe, e envolto no mistério, seria uma suprema ventura!

 

         Demais, quem sabe?... Salvaria dest